Fã Fic – Escrevendo Caminhos (Capítulos de 47 a 50)

Caderno de Memórias de Patch Angnelli.

É algum dia aí.
Não estou reclamando, mas minha mãe deveria ter me dado um caderno com folhas datadas. Esse negócio é horrível para escrever, principalmente para mim que mau consigo lembrar o que comi no café da manhã. E faz só uns cinco minutos que lavei os copos.
Enfim, estou apaixonado. Isso não é novidade. E me sinto um grande idiota quando paro para pensar em tudo o que faço, mas é meio fora de controle quando a Elara está por perto.
Como eu disse uma vez, é muito fácil amá-la. Ela simplesmente está ali, linda, maravilhosa e perfeita, então é fácil demais amá-la. E tenho muita sorte por ela me amar também. Ela apareceu do nada, e me amou, me ama. E é maravilhoso estar aqui e fazê-la sorrir. O jeito como o mundo parece mais mundo quando ela sorri, e o céu parece menos infinito quando os olhos dela brilham, não há nada no mundo que se compare a ela.
E como a amo.
A amo tanto que vou parar de escrever nesse caderno. Já superei o que tinha de superar. Não preciso mais dessa coisa chata. Nunca fui bom com isso mesmo, mas minha mãe vai ficar decepcionada se souber que não consegui usar nem dez folhas kkkkk


Merda, voltei.
Faz algum tempo que eu venho trocando email com uma fã do Il Volo que mora no Brasil. Graças aos céus que ela fala em italiano, senão de nada adiantaria. Li uma história que ela fez, tá mais para conto, na verdade, inspirado no Ignazio. Essas coisas que esses fãs loucos que decidem deixar a vida deles de lado para viver enfiado na vida dos ídolos. Quer dizer, quem é que mantém rede social e site tirando dinheiro do próprio bolso com algo que nunca lhe trará dinheiro de volta? Gente louca, obvio. Enfim, agradeço a loucura dela, porque vi o Ignazio e a Elara falando várias vezes sobre o conto que ela criou e acabei xeretando o site por mim mesmo. Li tudo em uns dez dias e venho trocando emails com ela desde então.
A princípio, pensei que ela fosse meio esnobe como esses fãzinhos que se acham os donos dos caras só porque dedicam dois segundos da vida a eles e tem porradas de fotos juntos. Me enganei. A considerei gente boa quando recebi a primeira resposta dela. Eu havia enviado email dizendo que tinha lido a história e gostado muito, mas queria saber se ela realmente acreditava que alguém poderia ter o dom que a Mona da história tem, e ela respondeu exatamente assim:

“Oiii Patch. Como você está, tudo bem aí na minha amada Itália?? kkkkk
Antes de qualquer coisa, fico muito feliz por você ter dedicado o seu tempo a ler algo que escrevi. É gratificante demais. E fico mais feliz ainda por você ter gostado. Eu peço desculpas por ainda não ter traduzido pro italiano, sei que o tradutor automático do site não é lá essas coisas, mas estou feliz por você ter conseguido acompanhar.
Sobra a Mona, minha resposta é: por que não? Por que não teria alguém com o mesmo dom que o dela? Você acha impossível? Eu, não. Posso ter exagerado um pouquinho nos detalhes -sou boa em exageros kkkk-, mas não acredito que seja impossível. Também não acredito que seja impossível o que ela e o Ignazio se tornaram, mas, bem, o que eu posso saber? Ainda não consegui chegar nessa parte kkk o que eu sei é: se você escrever, vai se tornar real na mente de quem lê, então vai ser real de alguma forma.
Sei que não ajudou muito. Não sou muito boa nisso, na verdade, não sei como as pessoas conseguem ler o que eu escrevo, mas tento melhorar com base no que leio.
Se você precisar de qualquer coisa, qualquer dúvida, estou à disposição sempre.
Obrigada mais uma vez.
Abraços.
Mayara Rocha
ILVolovers Brasiliane.”

Tem como não gostar de alguém que já se apresenta te agradecendo por alguma coisa? Não, não tem. Então segui com a conversa.
O que eu sei sobre anjos e anjos caídos? Nada se comparado a todas as citações e argumentos literários dela. E é legal, de algum jeito.
Comecei a chamá-la de Maya.
A Elara também.
Ela vai visitá-la em breve, agora que está indo pro Brasil e logo volta.
Aí vou levá-la para… não sei ainda, estou pensando. Pizzaria? A coisa mais chata e clichê na Itália? É, pode ser. Ou em um show do Ultimo, já tão clichê quanto a pizzaria. E pedir para marcamos a data de casamento logo. Quero isso para ontem, porque, como eu não canso de dizer, a amo demais.


Gianluca Ginoble.

Acordei no hospital há três dias. Eu simplesmente acordei e saí andando pelos corredores com essa roupa ridícula de hospital, mas percebi que tinha alguma coisa errada quando ninguém me notou, ninguém falou comigo, nem quando eu falava. Então voltei ao meu quarto e vi o meu corpo lá, deitado na cama, ligado há um monte de aparelhos enquanto eu estava aqui, sendo totalmente ignorado. Como uma releitura bosta da menina do Se Eu Ficar.
Já visitei o Piero, que está acordado e bem, tirando alguns arranhões aqui e ali, mas super triste com a Lia que ainda está desacordada. Os filhos deles estão bem, principalmente o pequeno Tiziano que chora desesperado o tempo inteiro. A Bárbara e o Michele também estão bem, mas só os vi um dia. Meus pais faleceram, ouvi o meu irmão, Ernesto, desabafando sobre o funeral e os parentes que vieram de longe ontem, quando veio me visitar com a Elara. A Elara vem aqui todos os dias, fora do horário de visitas, e fica ali sentada, lendo, olhando para o meu corpo enquanto estou sentado ao lado dela.
Já cansei de gritar, de falar, de chorar, de implorar e ninguém sequer olhar para mim. Então fico zanzando em silêncio e, quando volto, sempre estou do mesmo jeito, no mesmo lugar, com boa parte do rosto machucado, um olho inchado e roxo, a sobrancelha cortada e alguns zilhões de aparelhos interligados a tudo me fazendo respirar com aquele bipe-bipe infernal o dia inteiro.
E segui assim por mais quatro dias. A Elara não voltou e meu irmão também não.
No oitavo dia, quando eu já estava prestes a enlouquecer, ele apareceu. Do nada, ele estava encostado na parede perto da janela, me encarando com os braços cruzados. Parei de chorar e tentei limpar o rosto.

—Sério? Você tá com vergonha disso? Você lembra que eu já te vi nu, não é? —Falou, rindo e vindo se sentar ao meu lado.— Não é lá uma das coisas que eu queria ter visto, mas não tive opção. Alguém tinha que ajudar ela.
—Meu Deus, eu estou enlouquecendo —falei, voltando a chorar e escondendo o rosto entre as mãos.— Que merda tá acontecendo comigo? Que merda!
—Você precisa entender algumas coisas óbvias: eles não vão te ouvir, não adianta gritar.
—Que porcaria está acontecendo? Você tá morto, cara! Eu estou falando com alguém morto! Que merda é essa?
—Ah, para de drama! Você está sentado aqui e está deitado ali também. Isso é tão confuso pra você quanto é pra mim. Você acha que eu faço isso o tempo todo é?
—Eu estou enlouquecendo —falei para mim mesmo, fechando os olhos. Ele riu.
—Não, cara. Seu status está mais para “morrendo”, no gerúndio mesmo. Nada do verbo. Pendendo mais pro lado do morto do que pro lado do vivo. Há quanto tempo você acordou aqui e tá desfilando invisível pelos corredores desse lugar super agradável?
—Oito dias. Quase nove. Ninguém fala comigo.
—Eles estão vivos, cara, não vão falar com você. Lembra daqueles livros e filmes que todo mundo lê e fica tipo “nossa, isso é legal, mas não deve ser assim mesmo.” O problema é que é realmente assim, e não é tão legal na prática. Mas como é que os escritores vão saber? Eles nunca estão desse lado mesmo.
—O que você quer de mim? —Perguntei ficando irritado. Como é que ele pode estar feliz no meio dessa loucura toda? Não pode.
—Está mais para o que você quer de mim, na verdade. Já passei pelos meus pais, pelos meus irmãos, pelo Tiziano, e agora estou aqui. Claro que passei por todos os outros em sonhos. Ninguém chegou tão perto da morte como você. Parabéns, você foi o primeiro —olhei com raiva pra ele.
—Passou pela Elara também, no início, né? Quase enlouqueceu ela. É isso o que vai fazer comigo?
—Parei de aparecer nos sonhos dela quando ela pediu naquele cemitério. E eu estava aprendendo ainda naquele tempo. Estou bem melhor agora, mas não adianta, não consigo voltar aos sonhos dela por mais que ela peça aos céus enquanto reza. E, acredite, ela pede muito.

O fitei intensamente. Ele simplesmente ri, como se nada de estranho tivesse acontecendo.

—Vamos, faça uma pergunta!
—Por que ela não voltou mais?
—Ah, isso? É complicado. Ela vai voltar quando der, acredite, ela realmente não tem tempo.
—Eu perdi meus pais e ela não se importa nem em aparecer aqui.
—Não é isso, rapaz. Não fica julgando ela. Seu jeito de amar é estranho, só aponta os erros de um jeito totalmente moldado pelo ciúme. Você acha mesmo, de verdade, que ela não se importa? Para de falar besteira e pensa antes de deixar essa língua tagarelar idiotices.
—E você ainda a defende.
—Alguém tem que fazer isso entre nós. Você acusa, eu defendo. Vamos ver quem ganha.
—Isso tudo é brincadeira pra você?
—Eu sempre fui assim e nunca foi um problema. Não vejo porque seria agora.
—Cadê ela?
—Está ocupada. Muito ocupada, eu diria —falou , olhando para o relógio na parede.— Em poucos minutos, estará super ocupadíssima.
—Como assim?
—Você não se importou em sair daqui, né? De perto do seu corpo semi-morto —falou, rindo.— Vem, me segue.

O acompanhei tentando não olhar e não falar com as pessoas que encontramos no caminho. Hospitais são sempre lotados, mas é pior ainda quando ninguém consegue te ver quando você está na frente da pessoa. É de enlouquecer. E ele segue andando como se fosse a coisa mais natural do universo.
Paramos em uma sala que estava cheia de médicos e enfermeiros parados diante da televisão. Como esperado, ninguém falou nada quando paramos, em pé, na frente dela de forma que deveria atrapalhar a visão de todos.
Alguém ligou a TV no canal de jornalismo.
Ele apontou para a tela.

—Agora vamos falar com a nossa repórter Esposito que está agora mesmo na frente do edifício da empresa Michelli. Como estão as coisas aí, Esposito? —falou o âncora.
—Olá George, boa tarde. Aqui, como você pode observar, está um caos. Há menos de dez minutos, quatro policiais adentraram a empresa enquanto os grupos de apoio a empresária vaiavam, mais uma vez, a atitude do departamento de polícia. Desde que os policiais começaram a rondar a empresária Elara Michelli, dona da famosa e desejada marca Michelli, há mais de 20 dias, os grupos de apoio à empresária têm aumentado aqui na porta da empresa, por mais que a empresária fale que não há necessidade e que eles podem ir embora descansar na casa deles.
—São muitas pessoas, Esposito? —Perguntou o âncora.
—Sim, George. No começo era um grupo pequeno de 7, 9 pessoas. Hoje já passa dos 150, a grande maioria são fãs do Il Volo. E a empresária se preocupa em trazer água e comida para os manifestantes todos os dias. O que, com certeza, faz com que eles aumentem cada dia mais. A polícia não sabe o que fazer.
—O trabalho deles, seria bom —falou o âncora, rindo. Um tumulto começou a acontecer em volta da repórter que está posicionada bem na entrada da empresa da Elara, junto com outras dezenas de repórteres de outras emissoras. Elara aparece na entrada, acompanhada do Francesco, irmão do Piero, e escoltada por quatro policiais. Ela usa óculos de sol preto e aquele coque no cabelo, como sempre, muito elegante e culta. Não dá para ver qual roupa ela está usando, mas é algo em tom de marrom. Alguém faz uma pergunta e ela para para responder.
—Não, não me arrependo de nada —falou a Elara, no microfone. A camera deu zoom no rosto dela.— Se eu pudesse voltar no tempo, faria tudo exatamente da mesma forma que fiz. Se eu não tivesse contratado todas as empresas que contratei para encontrar os corpos nos escombros, não tivesse contratado todas as ambulâncias que contratei e não tivesse levado todos para o melhor hospital do país, sabe-se lá Deus quantos mais teriam morrido na esperança de serem encontrados pelo serviço incompleto e baixo do nosso país.
—Mesmo com a possibilidade de ser acusada pela morte de duas pessoas, senhorita? —Alguém pergunta.
—Com certeza. Eleonora DiVittorio e Ercole Ginoble não eram desconhecidos, já foram amigos meus e eu tinha um apresso muito grande por eles. Também estou sofrendo com essas mortes, mas não posso deixar de lado o fato de que foram as pessoas que contratei que os encontraram, idem como encontraram o filho deles, Gianluca Ginoble, e seu parceiro de trabalho, Piero Barone acompanhado da mulher, Liadan Bertizzolo e seus quatro filhos; o empresário, Torpedine e a Bárbara Vitali; além dos casais e das crianças. Sim, foram as pessoas que contratei que os encontraram, enquanto os poucos enviados para ajudar com o que quer que fosse estavam ocupado demais trabalhando em escombros nas outras ruas. Já perdi pessoas com quem eu me importava muito por conta de incapacidade de trabalho do nosso país, mas se eu não tivesse interferido da forma que interferi, gostaria muito de ver quem estaria levando a culpa por todas as mortes das pessoas que só estão vivas por conta do que fizemos.
—As pessoas estão do seu lado, Elara. Todos estão do seu lado. Como tem sido lidar com o possível processo e a responsabilidade por ter envolvido outras empresas nisso?
—Como já falei outras vezes, conversei pessoalmente com todos os meus parceiros de trabalho que estavam envolvidos nisso por serem simplesmente os melhores em seus ramos no nosso país. Pedi desculpas porque jamais pensei que poderia chegar a tanto, todos compreenderam, como falaram tanto para mim quanto nas plataformas sociais.
—O desempenho da sua empresa tem caído?
—Não. Nem aqui na Michelli, nem nas empresas parceiras. Tem aumentado, na verdade. Todos sabem que eu queria apenas ajudar, mas é impossível competir com a irresponsabilidade política do nosso país e as catástrofes da natureza.
—Senhorita, como está o Gianluca Ginoble? —Perguntou alguém, quando ela fez menção de começar a andar.
—Não consegui visitá-lo desde que passei a lidar com isso da polícia, mas tenho notícias diárias e os médicos estão bem animados com o caso dele. Ele ainda está desacordado, mas me disseram hoje que não será assim por muito tempo e logo menos ele vai acordar. Estamos todos na expectativa.
—Se ele acordar e decidir que a culpa é sua?
—Então a culpa será minha. E ele vai acordar, não coloque um “se” nisso porque tenho os melhores médicos no melhor hospital cuidando da saúde dele e de todos.

Haviam mais perguntas. Muito mais perguntas, mas os policiais se intrometeram e disseram que precisavam levá-la então abriram espaço para que ela e o Francesco passassem por entre os vários jornalistas e manifestantes que estavam uivando e segurando cartazes apoiando a Elara. E a camera segui nela até ela entrar na viatura policial e ser levada embora.

—Esperamos que nossos policiais saibam realmente o que estão fazendo —falou o âncora, quando voltou a aparecer na tela da televisão.— Afinal, é ridículo tentar culpar um cidadão que nada mais fez do que tentar ajudar todas aquelas vítimas. Estamos todos torcendo pela justiça, torcendo por você, Elara Michelli. Continue forte.

Continuei encarando a televisão, mesmo após ela ter sido desligada e todos os enfermeiros e médicos transformarem a sala em uma zona total enquanto voltavam aos seus trabalhos discutindo o que acabaram de ver.

—É por isso que ela não vem mais —falou o Patch, rindo novamente.— Então para de achar que você é o centro de tudo, porque você não é. E é exatamente por isso que eu estou aqui.

***

Eu passei dias com ele. O ouvindo, fazendo perguntas, rindo e aprendendo. Recebi algumas visitas enquanto estava longe, os medicos diziam, conversando entre eles sem saber que nós estávamos ali. Parei de me importar com isso.

—Por que agora? —Perguntei, quando entramos no meu quarto. Sempre ignoro meu corpo na cama porque me causa uma sensação estranha. Nos sentamos nas poltronas.
—Ela tá sofrendo. E dói vê-la assim. Mas você não sabe, não se importa o suficiente a ponto de tentar enxergar o que ela esconde.
—É fácil para você que pode vê-la o tempo inteiro se quiser.
—Eu a entendia muito antes de tudo isso acontecer. Eu a decifrava. Conhecia cada detalhe, cada linha de pensamento, cada vírgula.
—E por que você simplesmente não ajuda ela logo?
—Você acha mesmo que eu não tentei? Não tentei fazer nada depois de tantos dias, semanas, meses, assistindo o choro dela, conversando comigo sem poder responder? Acredite. Eu tentei. Não sei o que acontece, mas não tenho mais acesso à ela. Mas você tem, e gosta dela, mas sempre estraga tudo.
—Como você sabe?
—Que você gosta dela? Acha que eu sou realmente cego? Enquanto eu estava vivo, você já gostava dela.
—E você não se importava?
—Claro que me importava, mas sempre acreditei nela, confiei nela. É isso que você tem que entender.
—Eu estou entendendo, cara.
—Eu sei que está porque você tá sumindo.
—Não. Você é quem está sumindo, evaporando, como um fantasma, com o passar dos dias.
—Eu? Tem certeza? Eu estou morto, Gianluca. Eu não mudo mais. Agora você… está voltando.
—Voltando?
—Claro. Voltando. Em pouquíssimo tempo você vai estar de volta.
—Vivo?
—Claro.
—E eu vou…?
—Lembrar de tudo isso? Sim, é claro que vai. Se vai contar pra ela? Bem, isso é você quem decide, mas aconselho a não contar. Já vi o que vai acontecer.
—Sério? O que vai acontecer?
—Com vocês? Bem, você realmente aprendeu tudo o que eu disse. Vai saber o que fazer na hora certa.
—Eu vou contar toda essa loucura pra ela?
—Depende.
—Como assim?
—Com palavras? Na cara dela? Não.
—E eu conto como?
—Você vai saber. Você vai acordar, então presta atenção: jornalistas escrevem. Eles sempre escrevem. É mania, tic, sei lá. Não é diferente com a Elara. Ela escreve desde sempre e a resposta para o melhor jeito de contar a história para as pessoas certas está no Brasil, mas já foi inserida na vida dela há mais de cinco anos. Só não deixa ela colocar meu nome na dedicatória e, na hora certa, envia meu caderno de memórias também. Boa sorte, Gianluca. Cuide direito dela.

E ele sumiu.
E surgiu uma luz branca que ficava cada vez mais forte, até o momento em que fui obrigado a fechar os olhos.
Quando os abri novamente, meu corpo inteiro doía e minha cabeça latejava.
Eu estava onde deveria estar: no meu corpo. Sozinho. Com dor.
E o Patch se foi.


Elara Michelli.

Todas as vezes em que penso não aguentar mais nem uma gota d’água no copo que são os acontecimentos da minha vida; algo foge do meu controle, vira o mundo de cabeça para baixo, tira toda a água do meu copo e começa a enche-lo novamente. Percebo isso conforme o tempo corre, os anos passam, as coisas acontecem. Quanto mais eu tento seguir em frente, mais as coisas acontecem. Elas sempre acontecem. Sempre. Mas chega o ponto em que cansa. Eu cansei de tentar entender, compreender cada acontecimento. Minha vida é inescrutável, não dá para ignorar isso, só tenho que aceitar e seguir em frente.
E é o que estou fazendo. Conforme faço, deixo de lado os significados e a procura por uma lógica, seja ela qual for, a água vai ficando mais calma, mais branda e não tão turbulenta, cheia de ondas, e cada gota que é acrescentada fica mais fácil de ser incorporada ao oceano que já existia. E uma hora até o oceano para de tentar te derrumar e se acostuma com você.
Deixei as coisas acontecerem sem surtar. Fomos até Parma; sem surtar.
Lidei com Mariagrazia desesperada em prantos pedindo ajuda para encontrar o irmão; sem surtar.
Fomos totalmente ignorados pela equipe de buscas; sem surtar.
Cinco empresas do ramo de tratores que conhecemos e temos parceria chegaram para ajudar e demoramos apenas vinte minutos para encontrar o carro dos Barone e dos Ginoble soterrado embaixo de escombros, lidei com o desespero da Maria e do Francesco; sem surtar.
Os vi sendo tirados dos carros, colocados em macas e levados direto para o hospital que frequento, e Maria cada vez mais desesperada; e eu sem surtar.
Resolvi tudo para o enterro dos pais do Gianluca -que já chegaram mortos no hospital- já que o irmão dele estava desesperado demais para lidar com isso; sem surtar.
Dividi o máximo de tempo que pude na minha empresa com Sfalsin, com todos os funcionários colaborando, deixei vários pedidos de lado, e cumpri pela primeira vez o meu horário correto saindo da empresa às 17h para ir direto pro hospital e ficar mofando lá até pouco antes das 00h; sem surtar.
Lidei com processo que o Estado estava tentando jogar em cima de mim pela morte dos pais do Ginoble durante cerca de 20 dias, até tudo ser arquivado quando Ernesto, filho mais novo, apareceu diante do juiz enquanto eu depunha mais uma vez dizendo que não queria aquilo e que ninguém estava me culpando por nada, dentre outras coisas; sem surtar.
Lidei com todas as pessoas na porta da minha empresa, todas as manifestações em apoio durante o processo, todos os jornalistas, a imprensa, tudo; sem surtar.
Lidei com meus irmãos, todas as explicações que precisei dar, tudo que não contei e precisava contar; sem surtar.
E passou. Demorou apenas um mês, um mês e meio, mas passou. E, aos poucos, tudo tem voltado ao normal, se é que é possível voltar ao normal de algum jeito depois da imprensa nacional decidir criar um pedestal para mim e me empurrar para cima, mesmo eu dizendo que não precisa de nada disso. O resultado tem sido cada vez mais e-mails com pedidos grandes e parcerias com empresas grandes que tenho negado e ignorado em boa parte. Minha empresa está ótima do jeito que está, com as parcerias que temos e não nos abandonaram durante esse processo, e cresceram conosco durante esse tempo. Lealdade também tem lá as suas vantagens.
James e Matteo me ligavam ao menos uma vez por dia, e iniciaram, junto com o cantor Niccolò, mais conhecido como Ultimo, uma campanha de apoio na internet, o que me surpreendeu muito porque eles conseguiram fazer a campanha chegar em diversos cantores, no mundo inteiro, justamente por envover a saúde de alguém do ramo deles. Não sei como, Niccolo se tornou um grande amigo. Ter o apoio deles foi importante. Tão importante quanto o apoio diário, constante e indestrutível do Ferro.
Ele vem aqui, almoçamos juntos, ele me traz todas as notícias sobre os Barone e o Ginoble que ainda estão no hospital e me distraí, além de me fazer almoçar no horário certo. Maria o amará mais quando souber disso, se é que é possível. Como parei de visitar o hospital desde que fui informada do início do processo contra mim, a visita diária do Ferro sempre é muito esperada porque Mariagrazia e Francesco foram dispensados para lidar com a família pelo tempo que quiserem e tenho levado a empresa sozinha com o Sfalsin; não tem sido fácil, mas aprendemos muito e conseguimos lidar com todas as coisas com o decorrer dos dias.

—Senhorita? —Falou Sfalsin, colocando a cabeça para dentro da sala. Sorri para ele.
—Sim?
—O dr. Gildo está perguntando se você pode ir no hospital hoje? Alguém vai receber alta e como foi a senhorita quem deu entrada e está bancando tudo, a senhorita tem de assinar a liberação no hospital. Consigo cancelar tudo para hoje e remarcar para a semana que vem se a senhorita quiser.
—Claro. Por favor. Avisa o Gildo que estou à caminho e chego lá em menos de uma hora —falei, já fechando as páginas abertas no notebook e procurando as coisas para colocar na minha bolsa. Ele sorriu e assentiu.

Me despedi dele e praticamente corri até o elevador.
Procurei meu celular na bolsa.
Sorri quando o peguei e o nome do Ferro estava brilhando com uma foto linda dele sorrindo na tela do meu celular. O meu sorriso aumentou.

—El! —Falou assim que atendi, todo contente. Me enchendo de felicidade.
—Eu estava pegando o celular para te ligar, Ferro —comentei, sorrindo.— Falaram com você? Estou à caminho agora.
—Me ligaram. Te encontro na entrada do hospital, pode ser?
—Claro. Nos vemos em uma hora.
—Certo. Uma hora.
—Dirija com cuidado, Ferro —brinquei, ainda rindo.
—Você também, El.

Desliguei, ainda sorrindo.
Cheguei antes do esperado no hospital que estava com algumas dezenas de repórteres e câmeras e celulares e microfones que praticamente correram na direção do meu carro, como sempre, inconfundível, assim que adentrei o estacionamento aberto pouco antes do meio dia. Graças aos céus que haviam seguranças do hospital preparados para isso e criaram uma barreira na entrada, impedindo a passagem dos repórteres. Enquanto eu procurava minhas coisas dentro do carro, Ferro estacionou ao meu lado. Buzinou e abaixou o vidro. Abaixei também.

—E aí, gata —falou, rindo. Quase gargalhei. O rosto dele é mais surreal quando ele sorri, com aqueles óculos de sol preto e aquela música tocando no rádio.
—E aí, tranquilo? —Entrei na brincadeira dele.
—Tranquilo. Quer sair comigo agora?
—E almoçar na lanchonete do hospital? Eu adoraria —redargui, rindo alto. Ele desligou o som e procurou alguma coisa dentro do carro enquanto eu pegava minha mala de mão de sempre e saí do carro. Ele já estava me esperando ao lado da minha porta.
—Você tá maravilhosa, El —falou, pegando minha mala. Fechei a porta do carro e caminhamos com o meu braço descansando sobre o braço dele. Se ele não fosse quem é, e eu não fosse quem sou, qualquer revista poderia facilmente publicar que somos um casal e todos acreditariam. Ele sorri olhando para mim às vezes. Mesmo com o pouco sol que esse frio deixa aparecer, ambos estamos de óculos de sol. O meu tem a lente prateada. Acredito que ambos estamos tentando esconder nossas olheiras. Não ligamos.

Ele praticamente se jogou sobre mim para me esconder e me separar dos repórteres quando tivemos que passar por eles. Eu ri. Ele é o famoso e ele é quem está me escondendo das cameras. Que amor e que loucura.
Quando as portas-automáticas abriram e adentramos, tudo ficou mais calmo e tranquilo, longe das pessoas que nos perseguiam lá fora.
Gargalhamos, atraindo atenção, e não nos importamos.
Subimos direto para o terceiro andar e encontrei o doutor Gildo assinando alguns papéis sobre o balcão da recepção. Ele sorriu assim que nos viu.

—Senhorita Michelli —falou, me cumprimentando com um beijo no rosto— a senhorita está deslumbrante hoje. Senhor Ferro —falou, cumprimentando-o com um aperto de mão.— Fico feliz por você ter conseguido vir tão rápido, senhorita Michelli.
—É o mínimo que posso fazer. Agradeço muito por vocês terem cuidado de todos assim, do nada, e peço desculpas por não ter mais conseguido vir. Parecia ser a melhor coisa a fazer dado tudo o que estava acontecendo.
—Claro. E parabéns por ter saído dessa tão intacta quanto quando entrou. Eles deveriam te agradecer ao invés de tentarem te acusar do que for. Se não fosse você, todos não estariam mais aqui. Meia hora. Mais meia hora e o estrago teria sido 7 vezes maior. Acredite.

Sorrimos. Ele estava apenas tentando me consolar, embora eu não precisasse mesmo.
O acompanhamos pelos corredores do terceiro andar enquanto ele me atualizava sobre o que gostaria de fazer antes de liberar os pacientes.

—E quem vai receber alta hoje? —Perguntou o Ferro antes de mim.
—Todos estão prontos para receberem alta. Inclusive o senhor Ginoble. Estão todos bons, não estão mais instáveis. Nada que medicamentos no horário e dias de repouso não resolvam. Nada que realmente os obrigue a ficarem trancados aqui mais algumas semanas.

Passamos em cada quarto. Tive uma conversa breve com cada um deles. Não estou aqui para ouvir agradecimentos, então fizemos uma visita bem rápido. Embora eu tenha dito que o Ferro poderia demorar o tempo que quisesse, ele decidiu realmente me acompanhar. Demoramos um pouco mais no quarto da Bertizzolo, mas nada tão chocante.
Chamei três motoristas da minha empresa para levar todos eles em segurança para casa, embora eles tenham insistido muito que não precisava. Enfim. Maria e Francesco ficaram e eu gostei disso, gostei de vê-los tão calmos e serenos, tão normais se comparados a como estavam logo quando tudo isso aconteceu. Foi reconfortante vê-los sorrindo e brincando ao se despedirem do irmão, da cunhada e dos sobrinhos.
Ferro e eu estávamos parados, longe, vendo aquela cena deles se abraçando e sorrindo. Não sei se ele estava analisando cada um, mas eu estava.

—Estou tentando adotar um filho, El —falou, ainda de braços cruzados olhando os Barones a nossa frente. Olhei para ele com um baita sorriso no rosto. Se tem alguém que merece ser feliz nesse mundo, esse alguém é o Tiziano Ferro.— Na segunda-feira eu vou na entrevista. Eu ia contar pra ela antes disso tudo acontecer e pedir para ela me acompanhar.
—Eu posso te acompanhar, se você quiser —falei. Ele me olhou e sorriu. Tive de segurar as minhas lágrimas bem firme nos olhos.
—Obrigado.
—Se for menino, só não coloque o nome de Tiziano novamente. São muitos Tizianos já —falei, rindo, porque a Bertizzolo deu o nome de Tiziano ao filho mais novo. Ele jogou a cabeça para trás e gargalhou. Em seguida, me abraçou de lado.
—Você é a única pessoa que sabe disso. Espero que dê certo.
—Vai dar.
—E como você sabe?
—Eu apenas sei. Acredite. Vai dar certo.

Ele me abraçou mais forte, ainda sorrindo.
Existem pessoas que, embora nem conheçamos muito bem, a gente torce para que ela consiga tudo o que quiser e seja a pessoa mais feliz do mundo, simplesmente porque ela emana tanta luz que a gente só consegue desejar o bem. Ferro é esse tipo de pessoa.

—Você vai ser madrinha.
—Sem chances. Nunca nem segurei um bebe nos braços. O mais perto que cheguei de um, foi no útero. E eu era o bebe —ele gargalhou, ainda me abraçando.
—Você vai ser.
—Não vou mesmo.
—Vai ser, Elara. Estou falando.

Não respondi porque Mariagrazia e Francesco se aproximaram de nós.
Não consegui convencê-los de que não precisavam aparecer na empresa durante a semana, como sempre, ninguém me escuta.
Agradeci ao hospital por ter me dado um bom desconto nas despesas com eles, porque o custo foi realmente muito alto. Ignorei o pedido do Ferro para ao menos dividir o total com ele, paguei e fomos embora. Pensei que Ferro iria para Lazio, mas voltou comigo para Milano, provavelmente por conta da adoção da criança na segunda-feira.
Almoçamos juntos durante o resto da semana. Ferro é praticamente presença garantida no meu horário de almoço. Maria e Francesco se juntaram a nós assim que voltaram a trabalhar.
Pedi para o Sfalsin realojar todos os horários e entrevistas cancelados daquela segunda-feira para o resto da semana, porque teria de ir na segunda-feira seguinte com o Ferro ao orfanato, então a semana voltou a ser desesperadora e lotada, literalmente, principalmente com meus irmãos ligando cobrando minha presença na Mansão todos os dias e eu adiando minha ida. Sem contar que no próximo mês será aniversário das Duplicatas e acho que não vou conseguir inventar desculpas para não estar com eles esse ano.
Correu tudo bem com o Ferro no orfanato, mas ele não vai poder pegar a criança agora, apenas daqui a dois meses. E é um menino. Não faço ideia de qual vai ser o nome, mas o garoto é um bebê lindo. E o Ferro está bem idiota com isso de ser pai.
Passei por quatro viagens para fora do país e do continente para fazer entrega de quatro carros diferentes, todas durante a semana, todas com atraso no voo de volta, todas quase me enlouquecendo e tirando todas as minhas forças. Mas sobrevivi, e estava cansada demais para discutir com meus irmãos sobre estar na mansão no final de semana para o aniversário das duplicatas. Faz meses que não vou até a mansão e anos que preciso de um descanso verdadeiro dessa empresa.
Maria colocou a cabeça para dentro da sala, gargalhando, pela terceira vez hoje.

—Elara? Agora é o Luca na linha 7. Eles não vão te deixar em paz —brincou, ainda gargalhando.
—Quer saber? Você tem razão, Maria —respondi sorrindo. Ela saiu rindo e voltando a conversar com o Sfalsin. Atendi a ligação pelo ponto no ouvido. Me recostei na cadeira e pigarreei para mudar o tom de voz.— Sua chamada está sendo encaminhada para a caixa de mensagens e estará sujeita à cobrança após o sinal.
—Isso é assim mesmo? Mas a mulher disse que ela ia atender —Luca falou e eu sorri em silêncio.
—É assim o quê? —Perguntou Marco, mais ao fundo.
—Foi para a caixa de mensagens. Odeio esse telefone, por isso nunca uso essa coisa ridícula —falou Luca, meio triste. Não aguentei e caí na gargalhada. Quando ele percebeu o que havia acontecido e começou a brigar comigo, ri mais alto ainda. Mariagrazia e Sfalsin me olharam rindo e uma ideia me passou pela mente.— Certo, chega, El. Acabou a brincadeira. Vamos falar sério agora. Você vêm, não é, El? Você nunca veio, por favor.
—Eu conheço vocês, Luca. Se eu for no aniversário deles, daqui dois meses você vai jogar na cara o seu, depois vão querer fazer o meu e quando eu perceber já vamos estar passando o ferragosto juntos.
—Exato! —Ele disse animado. Ri alto.— é exatamente isso o que queremos! Somos uma família, El. Só somos nós quatro agora que não tem mais o Enzo e sentimos muito a sua falta, principalmente depois de tudo o que você passou aí. Vem ficar com a gente um pouco, em casa, curtir as nossas loucuras. Andar à cavalo. Beber vinho. Andar na floresta. Vai dizer que você não ama mais a piscina? O seu quarto?
—É. Você tá certo. Eu amo mesmo.
—Então vem, por favor.
—Tá bom, tá bom —falei rindo e ele ficou bem animado. Fingi que já não havia decidido ir faz 15 dias.— Mas posso levar alguns amigos aqui da empresa?
—Claro, claro. A gente tem espaço —gargalhei com ele.
—E o que vocês vão fazer? É só um bolo e fim, né?
—Ah, não sei —brincou, mentindo. Sempre sei quando ele tá mentindo.— Você conhece os gêmeos. Eles são tão imprevisíveis. Talvez tenha dança, não sei.
—Ah, não. Não vou levar roupa não.
—Não se preocupa com isso, Raridade Dos Meus Dias. Finalmente chegaram os pedidos particulares que mandei fazer aí na empresa e já renovei o seu guarda-roupas hoje. Tá tudo perfeito e te esperando aqui.
—Não é cheio de brilho e pedra e essas coisas toda glamourosa que você gosta, né?
—Claro que não —mentiu e eu ri. Não adianta discutir com o Luca porque o amo demais e sempre deixo ele ganhar. E ele ama demais renovar o meu guarda-roupa; ele faz isso todas as vezes que vou até a mansão.— Então você vem?
—Eu vou, eu vou —ri com a animação dele.
—E vai trazer quantas pessoas?
—Não sei, espera aí —falei, rindo e gritei pela Maria e o Sfalsin— Vocês tem algum compromisso pro final de semana? —Como os dois estavam com o final de semana livre, voltei a falar com o Luca.— Uns dois aqui do meu setor. Talvez o Francesco. Espera. Três pessoas com o Francesco. Talvez hm… vou confirmar, mas se todos aceitarem acho que uns sete, oito.
—Você vai convidar tudo isso de pessoas para vir aqui em casa? Tem certeza? —Perguntou brincando comigo. Eu ri.
—Tenho. Por quê?
—Porque já faz uns sete anos que algum “não Michelli” entrou nessa casa —disse, gargalhando. Gargalhei com ele.
—Se ficar jogando na minha cara que somos estranhos, eu não saio mais de Milano.
—Certo. Deixa pra lá. Traz quem você quiser. Quando você chegar, se vira pra comprar tudo o que vamos precisar.
—Eu mato vocês se fizerem isso.
—Te amamos, El —falou, rindo e desligou.

Ridículo que eu amo.
Terminei o desenho de um novo terno para o Bocelli e enviei para a produção antes de sair da sala e encostar na mesa do Sfalsin esperando ele desligar o telefone e fazer anotações no bloco de post-it.

—Diga, senhorita Michelli, no que posso ajudar a senhorita? —Perguntou Sfalsin ainda terminando de anotar algo no post-it azul.
—Você pode me chamar de Elara, Sfalsin. Já falei isso.
—E a senhorita pode me chamar de Giorgio —Mariagrazia gargalhou.
—Enfim. Vocês disseram que estão com o final de semana livre, então querem passar um tempinho comigo?

Sorri quando ambos disseram que sim, animados. Eles são sempre assim.

—E vamos pra onde? Outro cruzeiro? —Perguntou Mariagrazia, sorrindo, mas com a atenção voltada ao computador na frente dela.
—Melhor. Pelo menos para mim, é.
—E onde vamos? —Insistiu.
—Não sei se vai ser bom para o Sfalsin, mas talvez você goste. Eu lembro do seu desespero falando que adoraria conhecer aquele lugar há alguns anos —ela parou de digitar e me olhou boquiaberta. Deixei escapar um sorriso.
—Tá brincando! —Falou, finalmente.
—É uma comemoração simples de família. Preparem algumas roupas de frio, calor, montaria, essas coisas, porque não tem loja por perto. Nós vamos amanhã depois do expediente. Estou pensando em convidar o Francesco também. O que você acha?

Sorri conversando com eles e vendo a animação da Maria ao explicar para o Sfalsin tudo o que ouviu falar sobre a minha casa. Não corrigi as partes que ficaram faltando nem os tamanhos aproximados que ela falava que, na verdade, são bem maiores pessoalmente. Os deixei conversando sobre a minha casa enquanto descia para mais uma habitual conferida nas produções de todos os setores, que é uma atividade necessária que sempre me ocupa tempo demais. Na verdade, tudo tem me ocupado tempo demais já faz alguns anos. Estou meio exausta, então entrei no meu carro na quinta depois do expediente e Mariagrazia e Sfalsin me acompanharam em seus respectivos carros para seguirmos rumo ao sul do nosso país.
Nada melhor do que um feriado na sexta-feria.
Maria, Sfalsin e eu estamos com nossos pontos ligados para podermos ir conversando e eles poderem ir me seguindo, caso algum deles perca o meu carro de vista. São só umas 17 horas até a mansão.
Merda de empresa no fim de mundo metido que é Milano.
Merda de casa no fim de mundo esquecido que é Naro.

—Elara? —Chamou Maria no ponto em meu ouvido. Olhei pelo espelho para confirmar que o carro dela ainda está atrás do carro do Sfalsin que está logo atrás do meu.
—Fala.
—Seus irmãos sabem que estamos indo?
—Claro que sabem —falei, Sfalsin riu.
—E se não soubessem, e daí? A Elara é a dona de tudo mesmo —falou Sfalsin, eu e Maria rimos.

Sfalsin está mais íntimo agora. É legal. Foi ideia dele começarmos a cantar para nos mantermos acordados quando foi dando 03h e o sono foi chegando.
A plano era parar por volta das 07h para descansar e tomar um café, mas tive uma baita ideia e parei o carro quando o meu GPS falou o nome da rua que eu havia inserido há algumas horas.

—O que aconteceu? —Perguntou Sfalsin, estacionando o carro atrás de mim. Maria estacionou o dela atrás do dele. O sol estava tentando brilhar entre as nuvens.
—Paramos para o café —falei e logo em seguida tirei o ponto do ouvido. Já estava dolorido. Abri a porta do carro e estiquei as pernas feliz ao levantar. Esperei Mariagrazia e Sfalsin se aproximarem, todos caminhando estranho por conta do tempo que passamos dirigindo.
—Você tá doida, Elara? —Perguntou Maria, ao se aproximar sorrindo.
—Impressão minha ou paramos para tomar café no meio do nada? Só tem casa nessa rua. —Falou Sfalsin olhando ao redor.
—O cansaço fritou o seu cérebro? —Perguntou Maria e até eu ri.
—Não. Mas ele desligou com o sono —todos rimos novamente.— Vem, me sigam. E orem também, senão vamos morrer de fome.

Eles ficaram parados, encostados no meu carro. Apenas ri e caminhei até o portão da frente. Não sei exatamente quanto criei essa ideia, durante a madrugada, e mudei o rumo do nosso destino para Lazio. Desde que decidi fazer isso, venho pedindo em silêncio para não ter atrasado a viagem por uma coisa idiota.
Apertei o interfone e esperei. Evitei olhar para Mariagrazia e Sfalsin encostados no meu carro.
Eu já estava pensando na desculpa que ia dar para eles quando alguém, uma mulher na verdade, respondeu no interfone.

—Quem é? —Só isso? Se fosse na minha casa, alguém já teria avisado que não aceitamos visitas de desconhecidos logo na primeira frase.
—Olá. Bom dia. Eu sou a Elara Michelli, sou amiga… colega, na verdade. Sou conhecida do senhor Ferro. Eu não avisei que viria e ele não está me esperando, mas como estava passando pela cidade achei que talvez ele pudesse me atender, se estiver em casa.
—Só um minuto —ela respondeu.

E fiquei ali, plantada, sei lá quanto tempo. Tempo o suficiente para pensar que a mulher não voltaria a falar comigo. Tempo o suficiente para abrir o melhor sorriso que eu tinha quando vi o Ferro correndo, abrindo os braços e rindo, na direção do portão de entrada onde eu estava plantada, quase criando raízes já.
Fiz sinal para Mariagrazia e Sfalsin se aproximarem, mas eles continuaram parados.

—El, meu Deus! —Falou o Ferro, animado, quando já estava perto o suficiente para se fazer ouvir.— Você por aqui? O que aconteceu? Por que não avisou que viria para eu preparar algo especial pra você? —Quando ele abriu o portão, foi eu quem me joguei nos braços dele e o envolvi em um mega abraço.
—Decidi passar em cima da hora, quando Lazio apareceu na placa de trânsito —falei, rindo. Ele me ergueu enquanto me abraçava.— Já estava com saudade —admiti e ele riu.
—Eu sei. Você me ama há tempo demais. Lembra?
—Claro que lembro, mas ainda vale o mesmo aviso. Se contar para alguém, vou negar até a morte.
—Você acha mesmo que eu preciso contar?
—Tá bem na cara já, né? —Perguntei, rindo. Ele sorriu e me deu um beijo no rosto.
—E quem liga?

Entramos na casa do Ferro depois que ele saiu para chamar a Maria e o Sfalsin, e dei de cara com o Ginoble, o Barone acompanhado da mulher e os filhos.
Odiei o convite que já havia feito para o Ferro me acompanhar até a minha casa naquele exato momento, mas fiz cara de idiota feliz e concordei quando ele pediu para levar as visitas dele também, o que Mariagarazia adorou.
Enquanto eu, Maria e Sfalsin tomávamos café da manhã sentados à uma mesa incrível cheia de sucos, café, pães e frutas; Ferro e os convidados dele foram preparar algumas roupas para passar o final de semana na minha casa.
Ferro decidiu que não iria no carro dele, sozinho, então me comprometi a deixá-lo em Lazio quando estiver voltando, no domingo, e ele aceitou ir no meu carro.
Como esperado, fui a primeira a parar no portão dourado enorme da minha casa e o portão já abriu antes mesmo deu abrir a porta do meu carro. Sorri e dirigi até o local onde o senhor Lorenzo deve estar nos olhando, saí do carro e o cumprimentei rindo ao explicar que todos os outros quatro carros também deveriam entrar. E esperamos, conversando, até o Sfalsin passar já que ele foi o último. Decidi que todos adentraríamos nos mesmos carros que dirigimos até agora, mas percebi que não foi a melhor das ideias quando Luca e Matteo apareceram no meio do caminho e se jogaram na frente do meu carro, me obrigando a parar, e todos pararem atrás de mim com o Barone quase batendo na traseira do meu carro. Por um segundo, quase surtei. Seguimos o caminho inteiro andando enquanto eu atualizava meus irmãos sobre tudo o que havia acontecido durante esse tempo em que estive fora.
Eu não me lembro de ter visto aquela casa tão viva antes daquele dia. As crianças do Barone corriam desesperadas por todo o lado, enquanto eles mesmo saíam para olhar os lugares, observar as mudanças e tentar controlar os filhos.
Eu convidadei o Matteo Bocelli também, mas ele não pode vir por conta de compromissos com o pai, mas enviou o Niccolò no lugar dele e descobri que a Bertizzolo é uma parceira boa para qualquer música, então tive de mostrar cada cantinho apenas ao Niccolò, a Maria e ao Sfalsin, que nunca estiveram ali antes. E esse tour me exauriu demais, mas ainda tive força o suficiente para ficar conversando e rindo com todos após o jantar.
Como de costume, meus irmãos se retiraram para deitar pouco antes das 23h, e todos decidimos fazer o mesmo.
Depois do banho, vesti uma camiseta regata e um short que Luca deixou no meu guarda-roupa e sentei no chão da varanda do meu quarto, olhando as arvores à minha frente. Não demorou muito para o Luca aparecer no meu campo de visão passando por cima da grade e se sentando ao meu lado.

—Você pode usar a porta, sabia? Fica sempre aberta —brinquei, rindo. Ele sorriu também.
—Mas não teria graça. Como você tá, El?
—Estou bem, você pode ver dessa vez —ele me fitou e sorriu. Depois de um longo tempo ele me puxou para um abraço e me deixou descansar a cabeça no colo dele. Luca, sempre o mais carinhoso e sentimental. Sempre tão lindo.
—Eu te conheço de verdade, Elara. E você não precisa mentir pra mim. Como você está?

Eu não sabia muito bem como descrever toda a complicação que tem sido viver a minha vida. E sempre melhoro em alguns aspectos e simplesmente desabo em outros.

—Seus amigos estão zanzando pelas nossas terras —ele disse quando percebeu que eu estava começando a chorar. Ele me conhece demais mesmo a ponto de saber que eu nunca vou conseguir falar e preciso de distração.— Você acha que um deles vai acabar se perdendo? O Primo é o unico que tenho certeza que sabe o que está fazendo, mas não estou a fim de procurar ninguém.

Gargalhamos e me sentei ao lado dele novamente.
Eles, ironicamente, decidiram chamar Niccolò de Primeiro.
É evidente que Nicco não gostou muito, mas, sinceramente, quando o assunto foi me defender nas redes sociais quando o Estado decidiu que queria todo o nosso/meu capital após o falecimento dos pais do Ginoble, ele realmente foi o primeiro a se levantar em meu favor, quase que imediatamente. Não sei como, porque nunca o tinha visto pessoalmente, embora tenha deixado a Bertizzolo me carregar para uma tour inteira dele, quando ela trabalhou com ele e o Patch ainda era vivo, e aquela foi a melhor tour, mas nunca consegui me aproximar o suficiente para conversar com ele; nem trabalhado com ele no período de ativação do site, mas foi Mariagrazia quem me mostrou o primeiro storie dele dizendo o quanto estava inconformado com tudo e se preocupava em me atualizar sobre isso. Nicco logo recebeu a ajuda do Bocelli e do James e ainda os culpo por aquela multidão na porta da minha empresa. Não sei como Niccolò e Matteo conseguiram transformar aquilo em um projeto de apoio as vitimas de terremotos, mas conseguiram, e não tive coragem de dizer não quando o Bocelli pediu minha ajuda, então seguimos, Bocelli, Niccolò e eu, com esse projeto; mas sigo mais em nome e ajuda financeira, porque meu tempo corrido na empresa nunca me deixa participar das reuniões com eles; mas segimos, e é isso o que importa.
Refletindo sobre isso, deixo escapar um sorriso ao observar que Niccolò é a primeira pessoa que vejo meus irmãos realmente dando um apelido, praticamente o enturmando na família, então espero realmente que Nicco já tinha entendido que, aqui dentro, de alguma forma, ele conquistou favoritismo.

—Você lembra de quando saia no meio da noite e cavalgava até o topo do montanha para ver as estrelas mais de perto?
—Claro que lembro, —falei, sorrindo.— eu pensava que elas trilhavam nosso caminho naquele tempo.
—Você falava com elas.
—Na verdade, eu falava sozinha. Eu só queria dizer o que sentia em voz alta, me ajudava a não querer explodir todos vocês ao amanhecer do dia —ele sorriu pra mim e beijou minha bochecha antes de levantar.
—Secretariat está perto das escadas principais te esperando. Cavalgue até lá e procure o seu caminho novamente. Converse com elas. Fique mais perto delas. Você precisa disso também, El.

Eu sorri olhando ele sair.
Não sei como o Luca me conhece desse jeito, mas ele me conhece. Parece que o simples fato de estarmos respirando o mesmo ar faz com que ele desvende todos os meus segredos e me entenda. Eu não preciso contar as coisas para ele porque ele sabe, ele lê os meus olhares, lê os meus movimentos, meus sentimentos. Ele simplesmente me entende.
Me entende mais do que eu, pelo visto, que ri e fui me deitar na cama, inquieta e sem conseguir dormir acabei levantando e pegando a calça preta montaria que ele deixou sobre o sofá acompanhada de uma camiseta regata vermelha. Não lembro quando foi a última vez que andei de botas, mas percebi que são o meu calçado favorito assim que as calcei. Era quase 02h quando montei na Secretariat, que estava apenas me esperando como Luca dissera, e passava um pouco das 03h30 quando deitei na grama sobre as estrelas.
Não lembro em qual momento comecei a pedir ajuda, mas lembro que adormeci ainda pedindo isso.
Acordei com o sol maravilhoso do inicio do dia beijando meu rosto.
Sorri e continuei ali, observando o céu e o canto dos pássaros ao redor. Aproveitando a natureza. Levantei e revirei a bolsa cheia de frutas e doces que roubei da minha geladeira antes de sair de madrugada e voltei a me deitar na grama, comendo.
Fiquei encarando minhas botas quando a voz do James falou na minha mente:
“Fazer loucuras não é tão ruim. Seja você mesma, Elara.”
Sorri e tirei as botas. Voltei a me deitar na grama e, de repente o canto dos pássaros parecia mais vivo entre as sombras das árvores. Tudo parecia mais vivo do que eu me lembrava. Sorri. Um vento calmo e sereno passou por mim, me fazendo fechar os olhos e aceitar a paz que ele trazia ao meu peito. O sorriso aumentou no meu rosto quando a memória de Patch me carregando como um saco de batatas quando impliquei que não queria ir embora do shopping naquela tarde, naquele momento. Ele levantou e me obrigou a levantar. Eu repeti que só queria ficar sentada ali mais alguns minutos, aí ele me ofereceu aquele sorriso de lado que me desarmava por completo e estendeu a mão na minha direção. Eu não queria ir embora pra casa fazer sexo com ele naquele momento, então cruzei os braços e fiz cara de nervosa. Ele gostava de dizer que eu parecia uma menina birrenta com um bico enorme quando fazia aquilo. E eu sabia que ele amava. Então, em questão de segundos ele riu, pegou a minha sacola de compras e me jogou sobre o ombro me fazendo rir alto e gritar com ele mesmo com todos nos encarando como se fôssemos anormais. Meus óculos caíram no chão antes de chegarmos na escada rolante, então ele me abaixou para me deixar pegar os óculos, os peguei, os coloquei e corri dele. Duas crianças brincando de pega-pega no shopping em pleno sábado à tarde. Corri para o meio das pessoas na praça de alimentação e parei para comprar o sorvete que eu queria quando olhei ao redor e tive certeza que ele não estava mais próximo o suficiente. Quando meu número foi chamado e o atendente me entregou o sorvete, Patch apareceu me segurando pela cintura, me puxando para si e me roubando um beijo. Um beijo de verdade, que me encheu de vida e de alegria. A mão dele me prendia cada vez mais contra o seu corpo. Era esse o jeito que ele encontrava para conseguir o que queria.

—Você está derrubando sorvete nas minhas costas —ele falou com os lábios roçando os meus. Sorrimos.
—Você já fez isso comigo uma vez.
—Então é vingança, por acaso?

O beijei novamente, com a mesma intensidade que ele havia me beijado e senti quando ele se arrepiou.
Sorri.

—Isso é vingança —ele falou antes de me jogar sobre os ombros novamente.— Vamos resolver isso no carro.

E ele praticamente correu comigo sobre o ombro pelo shopping, com as pessoas rindo de nós, enquanto nós estávamos sendo felizes, vivos e eternos.
Me ocorreu que, naquele dia, eu usava botas.
E me ocorreu também que não chorei ao lembrar desse dia. Apenas sorri calma e senti uma ponta de saudade no peito.
Sorri para ele.
Sorri para o Patch.
Sorri diante do céu, entre a sombra das árvores, deitada no chão com o vento soprando sobre mim.
Apenas sorri e deixei alguma coisa voltar à vida dentro de mim.
Era uma coisa boa.
Fechei os olhos enquanto ela me dominava e acabei cochilando novamente.

*

Senti o perfume dele no ar antes de abrir os olhos, e antes de ouvir os passos dele sobre alguns galhos de árvores seco no chão.
Sorri.

—Luca —falei em voz alta.
—Meu Deus, Elara! Você trouxe todo mundo para matar todos de preocupação de uma única vez? —Perguntou, alterado, me ajudando a levantar. Não sei porque eu queria abraça-lo, mas queria, então o envolvi em um abraço tão forte que ele não teve nenhuma opção a não ser retribuir.— Você está bem? —Perguntou, com cara de preocupação, envolvendo meu rosto com as mãos. Ele é tão lindo.
—Sim, tudo bem —respondi sorrindo e o abracei novamente.
—Todo mundo ficou preocupado com você —falou, mexendo no meu cabelo enquanto eu descansava o rosto no peito dele.
—Eu sempre fui de fugir mesmo. A essa altura, pensei que vocês já estivessem acostumados —falei rindo e ele gargalhou.
—Você é a melhor pessoa desse mundo, El.
—Quanto tempo você acha que demora para chegar daqui até as quadras? —Perguntei, olhando para o verde sem árvores lá em baixo, longe.
—De cavalo? Uns 30 minutos. Andando? Uma hora e meia —sorri pra ele, e não demorou para ele desvendar.—Ah, não! Você não tá pensando…? Tá?
—Leva a Secretariat e me encontra perto da piscina —falei, já começando a correr.— E não esquece de pegar os meus sapatos e a cesta —gritei, já distante.

Eu sorri o caminho inteiro enquanto suava e desviava de pedras e árvores. E o vento me preenchia, e o canto dos pássaros me completava. E muita coisa foi deixada para trás com as gotas de suor.
Eu pensei que estava exausta, mas quando cheguei perto das quadras onde todos já estavam jogando vôlei e os filhos do Barone decidiram brincar de pega comigo, descobri que eu ainda tinha uma boa quantidade de energia guardada em algum lugar. Não demorou muito para que todos acabassem largando a bola e vindo brincar conosco. Caí várias vezes tropeçando na Mare e no Ian, os gêmeos mais velhos dos Barone, que praticamente decidiram grudar em mim para se desviar dos outros. Trombei com o Nicco muitas vezes também. Trombei com o Barone, com o Ginoble, o Ferro. Com os meus irmãos que toda hora inventavam de correr atrás de mim.
Ali, naquele momento, todos estávamos mais vivos do que o comum.
Não me importei com os celulares da Mariagrazia e do Sfalsin filmando ou tirando fotos vezes demais. Eu estava feliz, estava em paz e estava inteiramente suada.
Já passava das 14h quando me joguei na grama com a Mare e o Ian.

—Tia, você cansou muito? —Perguntou a Mare, rindo. Ainda eufórica.
—Muito mesmo— respondi ofegante.
—Você é legal, sabia? Bem legal.
—Vocês também, Ian. Vocês também. Cadê os seus irmãos?
—A Mariagrazia está com a tia Mariagrazia. E o Tiziano está ali, perto do tio Tiziano.

Olhei para a Mare e para o Ian.
Gargalhamos.

—Por que vocês precisam ter os mesmos nomes? Vocês complicam tudo.

Gargalhamos e ficamos encarando o céu enquanto tentávamos recuperar um pouco de energia para fazer qualquer coisa.

—Vocês sabem o que é pareidolia? —Perguntei, quando encontrei uma asa nas nuvens que ocupavam o céu.
—Não. O que é isso? —Eles perguntaram em uníssono. Eu ri.
—Sabe quando a gente olha pras nuvens e encontra bichos nela? Encontra formas, animais, estrelas. Como aquela asa ali —falei, apontando pra asa. Eles riram e ficaram extasiados com a novidade.
—E aquele dinossauro, Tia! —Falou Mare, gritando animada. Eu ri.
—Isso é pareidolia.

Eles ficaram encantados e passamos alguns minutos encarando as nuvens no céu à procura de qualquer forma conhecida.

—Vocês querem fazer uma loucura com a tia? —Perguntei, percebendo que me acostumei rápido demais a eles, que já me encaravam com um brilho diferente no olhar.— Tá vendo ali, depois daquelas árvores bem grandes perto daquele chafariz? Atrás daquelas árvores tem piscinas. Quem aceita correr comigo até lá e pular na piscina?
—Eeeeeuuuu! —Eles gritaram e eu gargalhei. Todos nos olharam.
—O que vocês vão aprontar, El? —Perguntou Marco, rindo.
—Nada de mais, não é, crianças? —Respondi, me levantando e ajudando eles a se levantarem.— E vocês deviam nos acompanhar —pisquei para o Ferro e parti em desparada com as crianças. —Vocês não vêm? —Gritei para eles rindo de nós três, deixando as crianças ganharem uma vantagem. E esperei até um deles começar a correr. O Ginoble. O Nicco. O Barone. O Ferro. Meus irmãos. Maria e Sfalsin. A Liadan e as crianças.

Meus amigos.

***

Foi o Luca e o Matteo que lembraram que morreríamos de fome se só ficássemos brincando o dia inteiro, sem nos alimentar. Os acompanhei até a casa depois de tirar a regata e ficar apenas de top, rindo. Eles não se importam. Ninguém se importa. Deixei eles conversando e resolvendo as coisas com os empregados e fui até o meu quarto pegar uma caixa de som portátil e colocar uma roupa decente. Não tenho muita coisa além de um short curto e encontrei no fundo da gaveta um biquine, agradecendo muito por isso. Não pensei duas vezes e o coloquei.
Desci e fui até a piscina com meus irmãos. Observei eles escolherem as músicas; observei o Nicco dar um xilique quando a Bertizzolo colocou Vieni Nel Mio Cuore para tocar porque ele não ia deixar a gente ouvir uma gravação se ele mesmo poderia tocar, que foi a melhor ideia da tarde inteira; observei todos rindo, brincando, pedindo para ele cantar mais e mais músicas e guardei o sorriso de cada um na memória.
Sabe, em momentos difíceis, as lembranças dos momentos engraçados cheios de sorrisos é o que fazem com que continuemos. Percebo isso quando observo o Nicco cantar Titoli In Coda, que é realmente linda e me lembra muito o Patch, já que viviamos ouvindo Ultimo mais do que qualquer coisa. Dou risada, feliz, porque olha onde estou agora, e ainda estou sorrindo. É engraçado como algo que tanto me fez mal, que fiz questão de bloquear na minha playlist, agora, ao vivo, diante de mim, está trazendo tanta felicidade.
Não oprimi a vontade que senti de abraçar meus irmãos. Não me importei por estar molhada, suja, suada e semi-nua. Não me importei com nada que não fosse abraça-los com toda a força que eu tinha. Cada um deles. E enchê-los de beijos.
Não sei bem o que mudou, mas acho que cresci o suficiente para parar de tentar esconder meus sentimentos. E já não era a hora.
Conversei com meus irmãos, brinquei com as crianças, coloquei o papo em dia com os Barone e, antes que eu percebesse, já havia dito em voz alta que amo o Ferro. Mariagrazia e Sfalsin mais riam das nossas conversas, e das piadas horríveis dos meus irmãos, do que falavam.
E Ginoble estava bem enturmado. Observei algumas cicatrizes mais claras no braço dele. Observei algumas no rosto da Liadan também. Não encontrei nenhuma à vista nas crianças, mas tem uma bem escondida na barba do Piero que só aparece quando ele sorri demais, não sei como. Cheguei a conclusão de que não é possível deixar nada para trás, e que, de algum jeito, o passado sempre vai ser um pouco do presente.
As crianças foram as primeiras a cederem e meus irmãos ajudaram o Barone a carregar cada uma delas para dentro da mansão, depois delas, todos fora entrando conforme o cansaço ia vencendo, até que fiquei sozinha depois de dispensar o Marco com mais um abraço.
Deitei novamente na grama, ainda com o corpo molhado, e fiquei observando o céu noturno.
Estrelas.
O céu daqui sempre tem mais estrelas do que o céu de qualquer outro lugar.

—Pensando em quê? —Perguntou o Ginoble estendendo uma taça de vinho tinto na minha direção. Aceitei a taça. A primeira do dia.
—Analisando quais as probabilidades do Carlo ter negociado algumas estrelas com o próprio Deus —olhei para a mão do Ginoble que carregava duas garrafas dos nossos vinhos. Ele observou meu olhar antes de sentar na grama ao meu lado.
—Uma mulher chamada Paola me entregou quando percebeu que eu estava voltando pra cá —falou, enchendo a taça dele. Sorri.— Quanto será que ele pagou pelas estrelas?
—Não cheguei a pensar no preço ainda, mas não acredito que foi barato —ele sorriu.
—Principalmente se você levar em conta que tem uma grande quantidade delas.
—Ele era exagerado mesmo.
—E me diga um italiano que não seja. Isso corre nas nossas veias tanto quanto o nosso sangue.
—Você está destoando o que eu havia te dito há anos, mas quem sou eu para discutir com isso?

Ele encheu a minha taça. Fiquei encarando o líquido escuro ciente de que o Ginoble me observava intensamente.

—Me desculpa, Elara —falou de um jeito tão sincero que me arrepiou.
—Não precisa fa…
—Não precisa, mas eu quero —me interrompeu. Respirei fundo e fechei os olhos.— Eu sou complicado, Elara. Bem complicado. Não me entendo e quero as coisas tudo para ontem. Eu não precisava que você fosse me buscar, mas não vou dizer que fiquei tranquilo enquanto você se transformava em nada no meio daquela cidade em ruínas. Eu nunca mais consegui pisar em Chieti. Só falto chorar implorando quando temos convite de show em Chieti. E antes de passar por esse desastre nos últimos meses, eu não conseguia dormir direito. E não conseguia ficar muito tempo sozinho. A imagem de você chorando no chão daquele hospital nunca me deixou em paz. E nunca vou conseguir me redimir, eu sei, não por ter feito você ir me buscar naquele dia, mas por ser um completo incapaz e não ter conseguido te ajudar no único momento da minha vida que vi você desesperada me pedindo alguma coisa.
—Ninguém poderia ter feito nada, Ginoble. Não se preocupe com isso.
—Você só me pediu uma coisa na vida, Elara. Uma única coisa. E eu não pude ajudar. É por isso que peço desculpas. E por ser um idiota também, claro.
—Agora você está falando do incidente no navio ou do inferno que você fez comigo naquela semana mandando eu refazer os desenhos mil vezes? —Ele riu quando eu ri.
—Qual te machucou mais?
—Todas as vezes que você falava que não tinha gostado do desenho, a minha vontade era de jogar você do alto do prédio —ele gargalhou.
—De verdade, desculpa, Elara. E obrigado por tudo o que você fez por mim. Eu perdi muito naquele terremoto, mas compreendo que tudo foi necessário. De alguma forma, eu precisava passar por isso para amadurecer um pouco.
—Passar por desastres fazem a gente analisar a vida de outro jeito, não é?
—É. Mais ou menos por aí.
—E como tem sido? Sem os seus pais?
—Meu irmão sofre mais, claro. É mais complicado para ele do que para mim.
—É complicado do mesmo jeito para todo mundo. Alguns só deixam transparecer mais do que outros.
—Você tem experiência nisso. Não vou discutir.

Gargalhei quando ele encheu minha taça novamente.
E novamente.
E novamente.

—Você foi um grande idiota mesmo —falei, rindo. Ele já estava deitado comigo na grama.
—Eu faço idiotices, principalmente quando sinto ciúmes. Mas ajudaria muito se você não ficasse me provocando, sabia?
—Você acha mesmo que eu estava com o James para provocar você? Eu nem lembrava que você existia —falei. Ele me deu um soco leve no braço. Olhei para ele, rindo. Tem algo diferente no ar.
—Nossa. Não sei se isso é bom ou ruim. Você estava com ele por quê?
—Porque sim. Te devo satisfação de alguma coisa, por acaso? Se ficar me torrando o cérebro eu te afogo na piscina e enterro o teu corpo no alto da montanha e ninguém nunca vai saber.

Pensei que ele fosse surtar, mas ele só gargalhou e me encarou.
Os olhos dele me lembraram a natureza.
E a natureza me lembra vida.
Sorri.

Continua…
Fic atualizada e revisada em 2023.

2 comentários em “Fã Fic – Escrevendo Caminhos (Capítulos de 47 a 50)

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