Fã Fic – Escrevendo Caminhos (Capítulos de 61 a 66)

Abri os olhos e levantei em um salto, como quando acordamos de um sonho em que estávamos caindo, tão assustada quanto meus telespectadores.
A dor de ter sentado em um salto veio assim que a adrenalina de acordar passou, e foi meu irmão, Marco, quem me ajudou a deitar novamente, preocupado. Demorei para me recompor, para conseguir respirar normalmente. Vi a preocupação nos olhos do Marco e do Luca, mas não consegui juntar forças para falar nada, nem quando percebi que, provavelmente quando sentei assustada, acabei tirando o acesso no meu braço e agora sangue corria por ele.

—Que susto que você nos deu, El —falou Marco, em tom doce, e em seguida beijou minha bochecha.— Ficamos tão preocupados. Todo esse tempo… Vou chamar o doutor para dar uma olhada nesse novo estrago que você fez. Já volto. Eles cuidam de você.

Fechei os olhos, ainda assustada, sentindo algo arranhar minha garganta, sentindo a boca seca. A dor nas costas foi aliviando e me deixando perceber que minha cabeça está latejando e minhas pernas doem a cada mínimo movimento.
Por algum motivo desconhecido, meus olhos se encheram de lágrimas, mas as contive ali, onde estavam.
Senti dedos frios correrem pelo meu rosto, várias vezes. Senti toque de lábios leves nele. Continuei de olhos fechados tentando lembrar o que havia acontecido, como havia acontecido, e onde eu estava. Há quanto tempo estava.
Abri os olhos quando o médico colocou a mão no meu braço e pediu para que o fizesse.
Nunca o vi antes, mas ele estava sorrindo pra mim.

—Olha só quem finalmente acordou. Seja bem vinda de volta, senhorita —ele disse, ainda sorrindo, enquanto limpava o sangue que corria pelo acesso que acabei tirando. Senti uma pequena pontada quando a agulha entrou novamente no meu corpo e ele recolocou os medicamentos que devem estar me ajudando de alguma forma.— Como você se sente? —Ele perguntou, olhando nos meus olhos.

Apenas os fechei.
Como eu estou? Eu não sei! Com dor? Confusa? Perdida? Com vontade de chorar? Tudo isso ao mesmo tempo?

—Você lembra o seu nome? —Perguntou, me fazendo abrir os olhos e acenar de forma positiva com a cabeça.— Você sabe quem são eles? —Me fez olhar ao redor pela primeira vez.

Dois dos meus irmãos estão ali. Um deles, Luca, ao telefone, chorando desesperado. Mais três homens que desconheço, uma mulher que claramente não é daqui, mas riram para mim quando meu olhar passou por eles. Balões de ar por todo o lado, flores na mesa no final da cama. Cestas de doces e vinhos espalhados em cada canto.
Não respondi à pergunta do médico embora ele tenha aguardando pacientemente enquanto eu analisava cada coisa, cada pessoa, sem demora.

—Você sente dor? Sente algum desconforto? —Ele insistiu.— Elara? Você consegue falar? Você está me escutando? Está me ouvindo? Elara?

A mão gelada dele tocou o meu rosto. Só então me dei conta de que sinto frio. Muito frio.
Todos estavam ao redor da cama, meus irmãos e os desconhecidos, falando comigo e com o doutor ao mesmo tempo. Fechei os olhos e ignorei a todos.

—O que está acontecendo? —Alguém perguntou, assustado.
—Ela falou com alguém desde que acordou? —O médico perguntou.
—Não. Falar conosco, não. Mas ela gritou algumas vezes antes de acordar. O que está acontecendo?
—Ela está bem? Como ela está?
—Vamos levá-la para a radiografia novamente. Peço que os senhores aguardem aqui. Não esqueçam que estamos sendo muito cooperativos ao deixar que todos vocês fiquem aqui ao mesmo tempo.
—Mas ela está bem, doutor?
—Alguém avisou o Gianluca?
—O que nós podemos fazer?
—Devemos nos preocupar?
—Gente, calma. A El acabou de acordar. Deixem os médicos fazerem o trabalho deles.
—Avisei a Lia. Ela disse que vai avisar o Piero. Não consegui falar com ele. Maya, você tenta avisar o Ignazio?
—O que podemos fazer?
—Vou pedir para uma enfermeira verificar se ela está com febre. Vamos levá-la para fazer mais uma radio…

Meu coração estava batendo cada vez mais descompensado, mais rápido.
Começou a doer.
Se tornou difícil respirar.
Uma sequência de bipes cada vez mais altos sobre todo o falatório. A gritaria.
Adormeci.

*

Abri os olhos do nada, sem noção nenhuma de quanto tempo havia dormido, mas com mais frio do que antes. Senti pequenos pontos gelados espalhados pelo meu peito. Algo apertando a ponta do meu dedo esquerdo. Uma dor constante nas minhas pernas.
Alguém, que não reconheci, sussurrou meu nome ao lado da cama. Várias pessoas estavam dormindo sentadas em poltronas.

—Vou chamar o médico. Tenta não morrer novamente durante esse meio minuto —ele disse e sorriu. Um sorriso incrivelmente lindo. Beijou minha testa.— Para de me assustar, Elara. Eu tenho um filho para cuidar agora, você é madrinha dele e nenhum de nós pode morrer. Nem você, nem eu com cada susto que você me dá. Sou velho demais para isso, El. —Brincou, com os olhos cheios de lágrimas enquanto sorria.— Eu já volto.

Morrer novamente? O que ele quis dizer com isso? Quantas vezes eu morri nesse processo de dormir e acordar? O que aconteceu comigo?
Fiquei revirando minha memória, o máximo que pude. Lembro de sair de casa, depois de almoçar com um rapaz. Mas quem é ele?
Patch. É o Patch.
Patch me acompanhou até o meu carro, mas só dei partida depois que ele ligou a moto e sumiu do meu campo de visão. Lembro de passar no mercado antes de chegar em casa, de comprar as coisas que ele gosta.
Um grande espaço de tempo. Não consigo preencher com nada. Depois ele me acompanhando até o aeroporto… Depois… Depois o quê? Agora?

—Elara? Você está me ouvindo? —Perguntou o médico, me tirando dos meus próprios pensamentos. Olhei assustada para ele.— Não precisa falar, só balança a cabeça e vou saber —então fiz que sim.— Certo. Você sente alguma coisa? Alguma dor? Algo está te incomodando agora, nesse momento?

Não sei. Algo está me incomodando? A dor constante na cabeça? O frio que percorre meu corpo? O medo de mexer as pernas e sentir mais dor? É isso que ele quer saber? Ou é o vazio? O jeito como algo me diz que tem alguma coisa errada?

—Elara, você sabe quem sou eu? Eu sou o seu médico, doutor Gildo —ele disse, calmo, quando percebeu que eu não iria concordar nem discordar.— Você me conhece há mais de 6 anos, e confiou muitas vidas às minhas mãos. Você sabe disso, não sabe?

Ele quer que eu concorde. É óbvio que quer que eu concorde, que está esperando por isso, por algum sinal positivo. E devia fazê-lo, não devia? O problema é que não lembro dele. Não sei quem ele é. Seis anos é muita coisa, não é? Como eu não lembro dele?

—El, você sabe quem eu sou? —Perguntou um homem, ao meu lado. Ele me olhava cheio de preocupação no olhar quando virei para ele. Mas é claro que o conheço. Fiz que sim com a cabeça e ele pareceu respirar aliviado. O que só me preocupou mais. Eu não lembrei quando o vi da primeira vez, assim que abri os olhos eu não sabia o nome dele naquele momento.—Certo. Menos mal então. Elara, você sente dor? Sente frio? —Fiz que sim, então logo ele estava preocupado em descobrir qual a minha temperatura.— Sente mais alguma coisa? Mais alguma coisa te incomoda? Sua cabeça? —Fiz que sim novamente.— Seus braços? Sua barriga? Suas costas? Suas pernas? —Fiz que sim e observei ele e o Tiziano trocarem um olhar preocupado antes de voltarem a olhar para mim.— Certo. Então vou acrescentar um medicamento aqui, direto no seu sangue, que vai fazer a dor aliviar, tá bom? Vai fazer ela dormir também, é melhor ela dormindo do que tendo de suportar toda a dor que está por vir novamente.
—Mas ela está bem, não está? —Perguntou o Tiziano, tão preocupado que chegou a me assustar.
—Ela está acordada, está ouvindo e está consciente. Já é muito mais do que nós esperávamos. Já é um milagre. Mas nossa prioridade é não deixá-la sentir mais dor. Ela não aguentaria, nem vocês aguentariam vê-la assim.
—Ela vai ficar fora de ar por quanto tempo?
—Ela vai acordar há cada oito horas. Um pouco antes isso, a gente bloqueia a entrada do medicamento na veia, e, algum tempo depois, ela acorda. E vamos refazendo os exames. Tentando fazer ela falar, tentando entender onde dói e o que estará ao nosso alcance.
—E ela vai ficar aqui por quanto tempo mais?
—Por todo o tempo necessário.
—E isso é quanto tempo, Gildo? Já estamos aqui há quase 30 dias.
—E agora ela saiu da UTI e está respirando sozinha. Já é um milagre, senhor Ferro. Já é um milagre. Agora, que ela finalmente abriu os olhos, vamos fazer o que estiver ao nosso alcance para não deixar que aconteça novamente o que aconteceu há quatro dias. Vamos fazer tudo o que for possível.

Fiquei apavorada. Olhei apavorada para os dois, discutindo a minha vida como se eu não estivesse ali. Como assim fiquei desacordada por quase 30 dias? O que aconteceu? O que houve nesse meio tempo? Forcei minha mente. Forcei, forcei e forcei até tudo vir, de uma vez, como uma avalanche. Não só os quatro anos, preenchendo o grande vazio, mas os 30 dias, o terremoto, o desespero de tudo caindo sobre mim, tudo desabando.
Comecei a chorar.
E então o Ferro colocou a mão no meu rosto e beijou minha bochecha, com os olhos cheios de lágrimas.

—Vai dar tudo certo, El. Estamos todos aqui com você. Tudo vai ficar bem —sussurrou, chorando.
—O Ginoble? —Perguntei, em meio as lagrimas, sentindo uma grande dor na garganta e os lábios secos. Tudo errado.— Ele… está vivo?
—Está, claro que está. Ele está bem. Não aconteceu nada com ele.

E então, finalmente, chorei mais. O doutor Gildo colocou a mão no meu ombro, em conforto, antes de sair, e me deixar chorar tudo de uma vez, como se eu nunca tivesse chorado antes. Como se chorar fosse algo novo, algo diferente.
E o Ferro ficou ali, chorando ao meu lado, apertando minha mão, secando minhas lágrimas quando elas se tornavam muitas. Secando as próprias lágrimas dele.

—O Gianluca ficou aqui por seis dias seguidos, enquanto você estava na U.T.I. Ele não conseguiu cancelar mais compromissos, e está na correria com o grupo resolvendo todas as entrevistas e shows remarcados. Vou ligar pra ele assim que você dormir.
—Não. Não quero isso —falei, chorando. Só por ele chorar, sinto mais vontade ainda de fazer o mesmo.— Eu…
—Eu estou aqui, El. Seus irmãos estão aqui. O Francesco está aqui. Sua amiga Maya está aqui. O Matteo vem aqui a cada dois dias, junto com Niccolò. Várias pessoas que se importam com você já passaram por aqui nesses dias, El. Estamos todos com você… só, fique forte. Tá bom? Não desiste! A gente vai ficar do seu lado o tempo todo.
—Eu… vou voltar a andar, não vou? —Perguntei. Chorei mais quando ele não respondeu de imediato e iniciou uma nova crise de choro.
—A gente vai descobrir junto. Quando tudo isso passar.

Ele ficou acariciando meu rosto enquanto nós dois chorávamos.

—Eu quero andar, Tiziano. E não quero morrer. Eu não quero morrer.

Foram as últimas coisas que eu consegui dizer antes de tudo ficar tranquilo dentro de mim, e sentir os lábios dele beijando minha testa enquanto lágrimas ainda corriam pelo meu rosto e um “eu sei, El. Eu sei.” pairou no ar até eu voltar a dormir novamente.

*

A sensação de ser drogada não é lá das melhores. Quer dizer, é bom no auge, quando tudo parece nada, literalmente. É tudo tranquilo, é tudo calmo. Mas, quando passa o auge dos mediamentos, toda a merda vem de uma vez. Enquanto você está acordado e consciente, consegue organizar as coisas e resolver um problema por vez, mas quando você apaga por várias horas, vários dias, os problemas não somem. Eles simplesmente ficam ali, ao redor, esperando. Quando você abre os olhos, eles te atacam. Todos de uma vez.
Tenho plena consciência de que não está havendo progresso no meu caso. Em nada. No começo, eu abria os olhos duas, três vezes ao dia, uns cinco minutos cada vez, mas a sonda ainda estava lá, os medicamentos continuavam a disputar lugar com o sangue nas minhas veias, aqueles pontos gelados pelo meu tronco distribuindo informações para tudo quanté maquina ao meu redor e aquelas visitas que nunca somem, nunca vão embora. Às vezes, um ou outro é substituído. Sempre é substituído. Sempre estou cercada.
Não sei que dia é. É um dia. Um dia. Ou uma noite, não sei. O doutor Gildo está parado ao lado da cama, como sempre, esperando -pacientemente- eu abrir os olhos.

—Olá, Elara. Como você se sente?
—Como uma drogada —ele sorriu.
—Pedimos para os seus acompanhantes aguardarem do lado de fora. Vamos fazer a troca de curativos com você acordada, para ver como você reage e finalmente te atualizar dos acontecimentos, okay?

Aguardei calma, fingindo que não estava sentindo nada, enquanto ele e algumas enfermeiras tiravam curativos de lugares que eu nem sabia que estavam machucados. Ele se preocupa em falar comigo durante o processo, tentando manter minha mente ligada em alguma coisa, qualquer coisa, que não seja a quantidade enorme de pequenos machucados, que, segundo eles, já estão curados.

—Você sabe o que aconteceu aqui? —Perguntou, colocando a mão na minha cabeça. Fiz que não e esperei.— Você não conseguiu ficar acordada o suficiente para ter noção de tudo o que passou, é claro.— Disse mais para ele mesmo do que para mim. Se percebeu o pulo que eu dei quando ele levantou meu rosto e começou a desenrolar uma faixa que eu nunca percebi que estava na minha cabeça, optou por não demonstrar.— Há algumas semanas, você estava indo visitar a casa do seu noivo, Gianluca, em Abruzzo. Vocês estavam indo de carro, no meio do caminho, mas fizeram uma pausa para você poder usar o banheiro de um hotel antigo. Gianluca ficou esperando por você no lado de fora, longe, perto do carro. E então, houve um…
—Terremoto —completei pra ele. Ele não sorriu dessa vez, apenas assentiu com um olhar triste e a voz cada vez mais calma, mais doce, enquanto continua desenrolando a faixa na minha cabeça.
—Disso você se lembra. Enfim, essa é a parte que o seu noivo me contou, aos gritos. Várias vezes. De várias formas diferentes.
—E a outra parte? —Perguntei, observando ele colocar a faixa em um cesto de lixo.
—A outra parte, claro. Você teve a falta de sorte de estar saindo do hotel no exato momento em que toda a estrutura veio à baixo. Foi assim que um pedaço de ferro ficou preso aqui. Sente isso? —Perguntou, apertando um ponto no topo da minha cabeça, onde é a matriz da minha dor.— E, sente isso? —Perguntou, colocando a mão sobre a minha barriga, fazendo com que eu perceba que ela está completamente enfaixada.— Madeira partida ao meio. De onde, exatamente, não sabemos. E, por fim, suas pernas. Muita coisa ficou sobre elas. Muita coisa, Elara.
—E qual parte é essa? —Perguntei, engolindo o choro. Trancando as lágrimas bem fundo, bem fundo, ciente de que há pessoas demais que se importam comigo observando cada detalhe através das paredes transparentes desse meu confinamento.
—Essa parte é a que todos vimos nos noticiários. Em todos os lugares.
—E qual a sua parte, doutor?
—A minha parte? Olha a nossa Elara aí, finalmente. O ferro entrou sete milímetros na sua cabeça, a madeira espalhou lascas que atingiram diversos órgãos e as suas pernas… É difícil dizer, mesmo já tendo passado em boa parte. Isso tudo fora os pontos que saímos distribuindo aí pelo seu rosto, pelos seus braços, nas suas costas, e embaixo dessa faixa na sua barriga.
—O que você acha? Da minha situação agora, Gildo?
—Que é um milagre, Elara. Um milagre. Na minha profissão, vemos pequenos milagres todos os dias, mas, às vezes, surge um grande milagre daqueles que faz com que tenhamos plena certeza de que estamos fazendo algo em prol de um futuro melhor, maior do que nós. Você atravessou a entrada de emergência desse hospital morta, Elara. Tenha certeza disso. Você estava morta, gelada e pálida. O seu noivo me ligou cerca de vinte minutos depois do acidente, nem havia passado no noticiário ainda. Aqueles rapazes que trabalham com você acionaram imediatamente a ONG que você criou com o Matteo Bocelli e o Niccolo, que logo entraram em contato comigo e mandamos os nossos médicos especializados para tentar te trazer em segurança, o que não foi nada fácil, acredite. Você teve duas paradas cardíacas no meio do caminho. Estávamos todos esperando por você, mas, ainda assim, me assustei quando vi você completamente branca, pálida, e gelada enquanto o seu sangue estava bem exposto no chão da ambulância, nas mãos e roupas dos médicos e espalhado também pelo seu noivo. Por alguns segundos, foi uma cena de fim de mundo. Quando te trouxemos de volta, levamos você direto para a mesa de cirurgia, e te perdemos mais duas vezes antes de sermos obrigados a parar, com medo de que você não voltasse mais. Você foi direto para a U.T.I., e intercalamos a resolução de todos os problemas que conseguíamos ver, que tínhamos conhecimento a cada nova bateria de exames. Você ficou na U.T.I cerca de vinte e dois dias. Entubada, claro. Até finalmente mostrar um pequeno sinal de melhora, até conseguir ao menos respirar sozinha, então te desentubamos e trouxemos para cá, onde seus familiares poderiam causar menos alvoroço trancados em um único lugar, do que espalhados por um corredor inteiro.

Ele riu. Sorri ao desviar meu olhar para todos aqueles rostos esperançosos nos encarando através da parede.

—Eles são incontroláveis, não são? —Perguntei, aumentando o sorriso e sentindo alguns pequenos sinais de machucados cicatrizando na minha bochecha.— Sei lidar com cada um deles de forma isolada, mas quando todos estão juntos, é demais para mim.
—Para todos nós também —admitiu rindo.
—E como estão as coisas lá fora, nas entradas?
—Seu pessoal está cuidando há muito tempo, porque só os nossos seguranças não dão conta.
—Peço desculpas pelo transtorno —ele gargalhou.
—Elara, Elara. Fico muito feliz de ver que, no fim das contas, você ainda está aí. Você é uma guerreira, Elara. Espero que saiba disso. E espero que saiba também que precisamos continuar trabalhando, juntos. E isso não vai ser muito agradável para você, mas preciso que você seja forte para que eu possa te ajudar em tudo o que estiver ao meu alcance.

Eu ainda estava absorvendo cada pequena informação nova enquanto tentava manter o coração batendo em um ritmo que mantinha o medo afastado e as lágrimas congeladas, quando ele me explicou que precisava que eu sentasse para tirar a faixa da minha barriga.
Mantive os olhos fechados quando a primeira tentativa falhou e ele teve a ideia de chamar dois meus acompanhantes para me ajudar. Foi bondade da parte dele me deixar escolher qualquer um e não hesitei ao dizer o nome do Ferro e da Maya. Meus irmãos me encaravam com o rosto cheio de lágrimas e os olhos cheios de esperança. Qualquer um deles poderia me ajudar, mas apenas o Ferro e a Maya não me fariam chorar mais, já que não havia lágrimas nos rostos deles e eles me olhavam confiantes. Preciso de confiança, não de esperança. São coisas totalmente diferentes.
Quando Ferro e Maya entraram e o doutor explicou o que iríamos fazer, Maya me ofereceu a mão e me permitiu apertá-la quando doesse, depois de dizer que eu conseguiria fazer aquilo e um olhar cheio de qualquer coisa, menos lágrimas, antes de eu finalmente fechar os olhos e concentrar as minhas forças em qualquer coisa que não seja meus irmãos cheios de esperança me encarando.

Não posso culpá-los por estarem acabados. Eu já estive na posição deles, de alguma forma, e sei exatamente como é isso. Sou a única família que resta pra eles, então é natural sentir esperança. Assim, tento demonstrar força porque é o que eles precisam.
Mas o Ferro e a Maya não têm esperança, por isso não me preocupo em ser qualquer coisa mais forte do que eu sou quando apertei a mão da Maya e o Ferro passou o braço direito dele por trás das minhas costas e apertou o meu braço direito, se tornando uma parede, uma base para que eu me apoiasse e tentasse sentar sozinha. Segurei as lágrimas, segurei os gritos de dor fundos na garganta, segurei as caretas a cada segundo enquanto o doutor tirava a faixa do meu corpo, mas não segurei os apertos fortes na mão da Maya, até os nós dos meus dedos ficarem brancos, até a mão dela ficar vermelha. Não segurei os tremores e os picos de fraqueza quando meu corpo cedia e queria voltar a deitar, onde a dor é menor. Foi o Ferro quem me segurou, me manteve sentada e colocou toda a força possível no braço que me mantinha ali, do jeito que eu precisava ficar.
O tamanho do corte me assustou, quando finalmente tive coragem de abrir os olhos e vê-lo. O jeito como toda a pele ao redor dele está vermelha, me assusta. Tudo me assusta. E o Ferro percebe isso, porque aperta mais o braço ao meu redor, me mantendo firme.
Fingi que estava tudo bem. Por fora. Sou boa com isso. Já fiz isso várias vezes.
A mão gelada do Gildo pousa próximo ao corte, ainda com pontos. Fecho os olhos e espero ele terminar seja lá o que estiver fazendo.
A imagem do corte se abrindo e todos os meus órgãos caindo por ele me veio à mente. Não consegui conter o pulo de susto. Encarei os olhares preocupados dos três ao meu redor. Estou bem.
Estou bem.
Estou bem.
É nisso que eu tenho de acreditar e só assim conseguirei seguir em frente.
No dia seguinte, ele tentou me fazer andar, mas me deixou deitar quando foi a única opção dele ao me ver desmaiada no chão.

***

—Como você se sente hoje, Elara?
—Vai continuar me drogando até quando?
—Até quando for necessário.
—E ainda é necessário, Gildo?
—Me diga você, Elara. Te deixamos por conta próprias por três dias, e você não dormiu por três dias.
—Já parou para pensar que pode ser porque vocês me fizeram dormir por tempo demais e eu esteja com as baterias mais do que recarregadas? —Ele sorriu de um jeito fofo. Ele faz isso quando sabe que estou mentindo mas não quer me chamar de mentirosa na frase seguinte.
—Não. Nós pensamos que, talvez, sejam os curativos e, provavelmente, a dor que te incomoda.
—Pode ser isso também. Pelo menos agora eu posso comer sozinha.
—E tomar banho sozinha. E transitar pelo jardim do hospital sozinha. Não finja que não tivemos um progresso, senhorita.
—Não estou fingindo. Estou contente com isso.
—Então também não finja que isso não exaure suas forças. Que cada passeio não te faz ficar quatro vezes mais cansada do que ficaria normalmente. E não finja que as dores não aparecem. Não esquece que temos diversos meios de descobrir o que está acontecendo com você, Elara, por mais que você esconda a dor.
—Quanto tempo mais o senhor vai me manter aqui? Estou começando a achar que o senhor gosta da minha presença nesse lugar —ele riu novamente. Aquele sorriso fofo.
—Não me leva à mal, mas estamos fazendo de tudo para enxotar você desse lugar, Elara. Você faz mais bem ao mundo lá fora do que aqui dentro. Acredite, apreciamos a sua presença, mas já estamos meio enjoados dela —falou rindo e me fazendo rir.
—E aquele bolo de chocolate que você me prometeu quando eu conseguisse abaixar a guarda dos meus supervisores? Não estou vendo nenhum deles hoje —ele riu novamente. Foi quase uma gargalhada.
—Viu como ficou mais fácil sem todas aquelas expectativas? Mas, ainda assim, você tem visita.
—Novamente? Mas pedi para todos irem embora, e eles me disseram que iriam. Eles não mentem para mim.
—Calma, calma. Ele ligou e perguntou se poderia vir. Concordamos que ele poderia vir. E o deixamos ficar em tempo integral, já que ele insistiu muito pra isso —falou, caminhando até a porta.— Aliás, deixamos ele entrar só com dois pedaços. Não exagere, tá bom? Vamos dar um tempo para vocês e depois seguimos a nossa rotina. Promessa, é promessa.

Foi como ser levada para uma nova realidade e descobrir um mundo novo. Não me lembro de que ver o Ginoble sorrindo para mim era algo tão poderoso assim. Mas foi.
Não consegui nem ver como o Gildo saiu do quarto. Só fiquei ali, calada, observando o Ginoble entrar vestido de terno e gravata, mas sem deixar de lado o óculos de sol. E aquele sorriso. Aquele sorriso, meu Deus, como acaba comigo. Ele realmente está vivo. Respiro aliviada.
Em um segundo, ele estava ali na porta, segurando flores e balões e dois pedaços de bolo em um recipiente de plástico; e agora está me sufocando enquanto me abraça, chorando e pedindo desculpas. Em um segundo ele é o super herói forte e imbatível que o mundo imagina que ele é; e no outro é só o meu Ginoble, assustado, com medo e cheio de sentimentos para colocar pra fora. 
Por sorte, e convivência, aprendi a lidar com os dois.

—El, me perdoa. Me perdoa. Eu… me desculpa, El. Eu, nossa! Olha você, acordada e bem. Meu Deus, obrigado. Me perdoa, El, me perdoa. Me perdoa —dizia, repetidas vezes, conferindo que eu estava ali, que era o meu rosto. Comecei a chorar por conta do choro dele, do desespero dele. Enquanto ele chora e ri, só consigo fazer o mesmo. Beija meu rosto, faz carinho na minha cabeça, sorri, enxuga as lágrimas e volta a chorar novamente e novamente e novamente.
—Hey, fica calmo. Tá bom? Fica calmo porque só uma pessoa pode se desesperar aqui, e essa pessoa não é você, nem eu —falei, ele sorriu. Sorri junto.
—Claro, você está certa —concordou, se sentando na poltrona ao lado da cama.— Nossa, como você tá linda.
—Você é um bobo, sabe disso, né?
—E você está linda! —Disse, encostando os lábios nos meus. Encarei os meus dedos.
—Estou pálida, Ginoble. Tem um buraco enorme na minha cabeça, estou pálida e cheia de machucados pelo corpo todo.
—E, ainda assim, é a pessoa mais linda do mundo.

Meus olhos se encheram de lágrimas e as soltei quando olhei pra ele. Senti que não precisava esconder nada, então não segurei nem uma lágrima sequer. E ele chorou comigo.

—Eu queria falar com você —dissemos os dois, em uníssono, quando as lágrimas deixaram.
—Você primeiro —ele disse, rindo.— Você está trancada aqui há quase três meses, com certeza tem esse direito —sorri com ele.
—Não é de todo ruim, sabia? —Brinquei. A mão dele ainda meche no meu cabelo, e algumas lágrimas correm pelo rosto dele aos poucos. E, ainda assim, ele olha para mim e sorri.— Eles me alimentam e me deixam assistir o que eu quiser.
—É por isso que a televisão está desligada? —Perguntou, me fazendo rir com ele.
—Ah, é que eu enjoei dos programas. São chatos e repetitivos —admiti. O sorriso aumentou no rosto dele.
—Então cheguei no momento certo para te entreter —ele disse, beijando a minha bochecha.
—É sobre isso que eu quero falar. Você não precisa parar tudo para ficar aqui comigo, Ginoble. Não precisa. E, desde quando você anda com seguranças?
—Aqueles rapazes que entraram comigo são seguranças seus. Tem aos montes no hospital —falou, sorrindo.
—E de onde você veio? Exatamente?
—O quê? Um rapaz não pode colocar o seu melhor terno para ir visitar a sua namorada? —Falou, fingindo cara de ofendido. Não aguentei segurar o riso.
—Pode, claro que pode. Mas não é isso o que você faz. De onde você vem?
—Não precisamos falar disso agora, El.
—Você não precisa ficar aqui, Ginoble. Preciso que você saiba disso. Saiba que você pode ir embora, que nada te prende a esse lugar e que tem um mundo de pessoas esperando por você nesse momento.
—Elara, Elara —respirou fundo. Contive o riso.— Esse é o pior jeito de tentar me fazer terminar com você —rimos juntos. Ele afastou as flores e o bolo para poder sentar na cama, de frente para mim. Tentei ver meu reflexo nos olhos dele, cada machucadinho, cada fio de cabelo que ele, delicadamente, prendia atrás da minha orelha.— Vou cair nessa sua armadilha por dois minutos. Dois minutos e não falaremos mais disso, tudo bem? Você concorda? —Fiz que sim com a cabeça.— Antes de começar, não espero que você me entenda e nem que engula tudo o que eu disser sem reclamar ou argumentar, mas espero que você entenda que a decisão foi minha e não vou voltar atrás no momento. Eu estou preparado para cada briga sua. Já revi isso na minha mente milhões de vezes e, acredite, fiz tudo por mim também. Okay?
—O que você fez, Ginoble?
—Presta atenção, El. Logo que tudo isso aconteceu, ninguém conseguiu me tirar de perto de você por uma semana. Uma semana inteira, fiquei te observando através daquela janela. Não liguei para os compromissos, para nada. Até o Matteo, filho do Andrea, conseguir cancelar os compromissos com o pai, fazer aquele seu amigo da ONG cancelar os shows e virem te visitar. Eles conversaram comigo e me convenceram de que poderia ser bom para mim voltar ao trabalho, esvair a mente, sabe? Concordei com eles, até porque eles assumiriam o meu posto aqui, com você enquanto eu estivesse fora. E eu estava acabado mesmo. Então meu irmão deixou tudo de lado e veio me acompanhar. Mas sabe qual era o problema, El? Quando eu não conseguia dormir, eu sabia que não ia adiantar ligar pra você porque você não estaria lá; e eu não estava preocupado com o horário que você estaria na empresa, ou o que estaria comendo. Porque você estava aqui, trancada aqui. Morrendo. E o meu trabalho me levou para outro continente, no meio do nada. E, e…
—Você lembrou de quando o Patch faleceu —completei, já que ele não ia conseguir completar mesmo. Ele concordou com um gesto de cabeça.
—Então eu tentei vir. Tentei adiar algumas entrevistas, convencer a Bárbara a tentar me ajudar, convencer os rapazes, qualquer coisa. Mas, quanto mais eu pedia para voltarmos, mais entrevistas eles arrumavam, mais desculpas. E funcionou, por muito tempo as distrações deles funcionaram, me obrigaram a ficar com eles. Até eu chegar no meu limite. Então, falei que estava fora, peguei o primeiro voo do México direto pra cá e vim ficar com quem precisa de mim de verdade. Com quem eu preciso de verdade. E eu preciso de você, Elara. Acredite. Cada segundo que fiquei longe de você, minha mente estava aqui, preocupado, o tempo inteiro.
—Gianluca, você desistiu do grupo? Mas os rapazes precisam de você.
—Não, El. Não! Eu preciso de você, e você precisa de mim. Precisamos um do outro e eu estou aqui, é isso o que importa.

Ele não está errado. Eu, em outro momento, explodiria em briga com ele agora. É uma decisão estúpida e impensada, e egoísta. Egoísta da minha parte, por estar feliz com isso tudo, com ele aqui. Não é certo.
Respirei fundo e fechei os olhos.

—É isso? —Ele perguntou, depois de muito tempo.— Sem briga? Sem discussão?
—Estou cansada demais para isso. Não quero gastar as poucas energias que me restam discutindo com você —falei, sorrindo. Ele sorriu junto.
—Acho que vou manter você morrendo aqui para sempre —brincou, erguendo minha mão e a beijando. — Sabe, estive pensando muito e acho que a gente pode ir pro Brasil assim que você sair daqui.
—Você está brincando, não é? —Perguntei, com meus olhos enchendo de lágrimas novamente.

Ele tirou uma caixinha do bolso e demorei para entender que eram as minhas alianças. Observei enquanto ele as colocava no meu dedo e o beijava. Eu ainda não havia ficado acordada por tempo suficiente para sentir falta delas.

—Não, El. Não estou brincando. Se recupera logo, e eu prometo que, assim que você puder sair daqui, eu te levo pro aeroporto e vamos pegar o primeiro voo direto pro Brasil.

Não consegui conter as lágrimas novamente, principalmente quando ele me envolveu em um novo abraço e me encheu de carinho.
E confiança.
Comemos o bolo juntos, as flores ocuparam um jarro lindo na escrivaninha do quarto e Ginoble se tornou uma base sólida durante todas as sessões do Gildo.

***

Recuperação só não é mais merda porque, em algum lugar, deve haver um limite para isso, diferente do cansaço, claro, que pode ser eterno, assim como a exaustão.
Eu pedi, e pedi, e pedi e pedi milhões de vezes para o Ginoble ir embora, ir descansar, ir tomar um banho decente e demorado na casa dele, dormir em um lugar decente, assistir algo legal na televisão, andar na praia, qualquer coisa, mas ele é birrento, e quando coloca uma coisa na mente, nem mesmo eu, quase enterrada na cama do hospital, consegue fazer ele mudar de ideia. Então ele ficou comigo por 24 dias. 24 longos dias. Tenho certeza de que ele esperava o auge das minhas drogas fazerem efeito para simplesmente fazer tuto o que precisava. Todos os dias, quando eu abria os olhos, ele já estava acordado, sorrindo para mim enquanto segurava minha mão, com o cabelo arrumado, banho tomado, uma roupa nova e muita disposição para me ajudar a andar e conversar comigo, brincar e tirar dúvidas com o Gildo.
Recebi várias visitas, mas a maioria delas veio quando eu estava desacordada, e ainda assim, consegui ver e conversar com todos os meus irmãos, o Ferro veio várias vezes, a Maria e o Bocelli. Francesco, Barone, a Bertizzolo, o Boschetto e o Sfalsin vieram, várias vezes segundo o Ginoble, assim como o irmão dele, mas eu não estava acordada.
Só fiquei por minha própria conta, sem os medicamentos, três dias antes de receber alta, o que foi o teste em que tanto eu quanto o Ginoble passamos.
Sair do hospital foi um problema. Um grande problema. Havia dezenas de jornalistas querendo fazer perguntas, tentando chegar ao nosso carro de qualquer jeito. Luca, meu irmão, buscou as minhas coisas naquele dia de manhã e Ernesto, irmão do Ginoble, nos ajudou a sair, assim como meus seguranças tentaram criar uma barreira entre nós e os jornalistas no estacionamento. Ginoble estava todo sorrisos e, sempre que possível, arranjava um jeito de fazer carinho ou beijar minha bochecha, como de costume. Ele sabe que andar ainda não é lá tão fácil como já foi um dia e por isso mantém a mão firme ao redor da minha cintura, nem finge que não gosta.
Jamais pensei que diria isso mas tive de convencê-lo de que nos mudarmos agora não seria a melhor opção. Ele relutou muito, mas acabou cedendo quando o Gildo o aconselhou do mesmo. Assim, estou no banco do carona mais uma vez, com ele dirigindo o meu carro como em um déjà-vu, com a casa dele como destino. Achei melhor não discutir com ele quanto a isso, até porque a casa dele é própria, próximo à praia, enquanto moro em um apartamento no meio do centro metropolitano de Milano. Não é preciso pensar muito para chegar a conclusão de que a casa dele é melhor que a minha nesse momento. Ele fez um caminho diferente do que fizemos da última vez, mas só percebo isso quando já estamos passando em frente à praia. Poucos minutos depois, ele deixa o carro na garagem e corre para me ajudar.
Aos poucos, pela primeira vez, coisas minhas começam a fazer parte da casa dele. Não coisas minhas de verdade já que ele não me deixou passar na minha casa e, ao menos, pegar algumas roupas e calçados. Tudo é novo, tudo comprado por ele. É ridículo e humilhante ficar trancada aqui esperando ele voltar, mas não estou pronta para o mundo lá fora. Não ainda.
Aqui é tão diferente de Milano, da minha casa, de Naro. Aqui faz calor o dia inteiro e até quando o sol está se pondo, como agora, o ar não fica leve e, ainda assim, não troco a blusa de manga longa e a calça por nada. O máximo que faço é prender o cabelo em um rabo de cavalo alto, mas só faço isso porque a opção “cabelo solto” é pior do que a opção “cabelo preso.” Quando percebo o meu reflexo nas divisórias de vidro da porta dupla de madeira a minha frente, me levanto para abri-las e não precisar me encarar por mais tempo do que já me encaro, e continuo sentada na poltrona que o Ginoble colocou aqui há cerca de oito, nove dias. À minha frente, a noite está chegando mais uma vez, e a praia é incrivelmente linda, exatamente como Ginoble a descreveu várias vezes.
Ouço o barulho do carro, o meu carro, estacionando na garagem. A porta da entrada abre e Ginoble entra, mais uma vez, cantarolando uma música que ele cantarola desde que ficou comigo no hospital. Eu o escutei cantá-la baixinho várias vezes, enquanto estava desacordada, e já o ouvi cantarolá-la várias vezes, depois voltar a cantá-la baixinho quando está sozinho, ou quando pensa que eu estou dormindo.

—Tesoro! —Gritou, indo até a cozinha e deixando sacolas sobre a bancada.— Tiziano ligou novamente. —A mão dele parou no meu ombro. Olhei para cima, sorrindo. Ele me cumprimentou com um beijo e se sentou na poltrona à minha frente.— Eles estão preocupados, amor. Seria bom se você falasse com eles, dissesse alguma coisa.

Ofereci um sorriso carinhoso em resposta. Os olhos dele brilharam de um jeito diferente. Eles sempre brilham assim quando eu sorrio dessa forma.

—Você já quer conversar, Elara?

O ignorei, como sempre faço quando ele me coloca contra a parede assim. Esperei ele se dar por vencido, como de costume, e mudar de assunto, mas dessa vez ele ficou me encarando. Senti o peso do olhar dele sobre mim. Não gosto mais da sensação de ter alguém me olhando, alguém prestando atenção em cada…
Ele colocou a mão na minha bochecha e sorriu quando olhei para ele.

—Eu te amo —disse, ainda sorrindo. Eu queria, tentei, sustentar o olhar dele, mas não consegui. Resisti à vontade de afastar o rosto da mão dele quando o polegar pousou sobre uma cicatriz que tenho na maçã do rosto quando ele decidiu acariciar ali. Mantive o rosto parado.— Quando você vai me deixar ver, Elara?

Já cansei de chorar na frente dele por besteira, então tento manter as lágrimas congelada e é por esse motivo que acabei afastando o rosto. Ele puxou o braço no mesmo instante.

—Desculpa, amor. Eu não quero forçar…
—Não tem problema —falei, forçando um sorriso.
—Quando você vai conversar comigo, El? —Dessa vez ele colocou a mão na minha perna, mas manteve o olhar firme, me obrigando a encará-lo. Respirei fundo.
—Eu não sei —falei quase que em um sussurro. Ele assentiu.

O silêncio tomou conta. Aquele silêncio reconfortante, de alguma forma. Ele ficou quieto, sorrindo, enquanto eu girava e girava as alianças no dedo dele, isso virou um costume já, e ele aprendeu a ficar me olhando enquanto faço isso. Recuei, muito tempo depois, quando ele colocou a mão sobre a minha, mas não consegui prever que ele iria levantar e se sentar ao meu lado na poltrona.
Ele aprendeu muito bem a conseguir se aproximar sem que eu perceba, sem que eu sinta o toque. Pouco tempo depois, ele já havia passado o braço por trás do meu pescoço e o usava para me aproximar mais dele, até que acabei encostando o rosto no seu ombro e entre um beijo e outro na minha bochecha, ele volta a cantarolar aquela música. Aquela música que tenho certeza de que conheço, mas ainda não sei qual é.
Ele sorriu quando percebeu que o estava encarando.

—A senhorita tem alguma observação a fazer? —Perguntou, virando o rosto de leve para mim. Sorri.
—Você sabe que encostar o rosto no seu agora é como encostar a cara na areia, né?

Ele gargalhou. E ver esse momento me encheu de alegria, de alguma forma.
Antes do acidente, Ginoble se preocupava em cortar cada pequeno indício de barba. O rosto dele era quase mais liso que o meu. Quando ele chegou no hospital, lá estava ela no rosto dele. Não é feio. Ele perdeu aquela aparência mais jovem e ganhou um ar de homem convencido. É lindo.

—Estou aliviado agora —falou, ainda sorrindo.— Pensei que você nunca fosse reparar.
—Não tem como não reparar nessas pequenas agulhas encostando na minha pele —brinquei e voltei a encostar o rosto no ombro dele.
—É por isso que não dormimos junto? —Perguntou, sorrindo. Inteligente da parte dele, voltar ao assunto inicial de um jeito muito sútil.
—Quem dera fosse, Ginoble. Quem dera fosse.

Fechei os olhos e adormeci pouco tempo depois.
Ele me acordou, pela terceira vez, para tomar os remédios.

—Você está cansada hoje —falou sorrindo ao me oferecer os comprimidos e um copo com água.
—Ficar olhando para a sua beleza me exaure.

Ele sorri, embora a piada tenha sido uma merda.
Já é quase duas horas da manhã e eu ainda estou sentada na poltrona, e a porta continua aberta, mas o Ginoble volta para a cozinha e mexe em uma sacola.

—Eu vou te pedir uma coisa, e dessa vez você não vai negar —disse, pegando a sacola e vindo até mim.— Chega de dormir por hoje.
—Nossa, mas está tão cedo —brinquei enquanto ele pegava o copo da minha mão e o levava até a cozinha.— Você quer brincar de quê, uma hora dessas, Ginoble?
—Se você anda pela casa, pode andar comigo até a praia ali na frente.
—Sair? Não! Não mesmo, Ginoble! Faço qualquer outra coisa, menos isso.
—Você vai sair sim, porque é isso o que eu estou pedindo —falou, me puxando pelo braço para me levantar. Graças a Deus, não doeu. Ele praticamente me arrastou até a porta.— El, olha. Não tem ninguém na rua. Não tem ninguém na praia. Se você passar mal, de verdade, prometo que voltamos no mesmo instante. Mas me dá uma chance, por favor.

Eu não quero sair. Não quero ver ninguém, e o Ginoble sabe disso. Não quero falar com as pessoas, não quero ter de explicar cada detalhe de como estou e do que aconteceu. Não quero ninguém me olhando diferente. Não quero nada disso, mas é sempre isso o que me resta.
Ginoble sorriu e segurou minha mão. Respirei fundo três vezes, geralmente três dá sorte, e caminhamos. Ele quase me puxou, na verdade, mas estava certo porque não encontramos ninguém na rua, nenhuma luz acesa e não havia ninguém na praia.
Ele nos levou, à passos lentos por minha causa, até uma rocha pequena e observei ele tirar uma toalha da sacola e colocá-la no chão. Praticamente jogou nossos calçados de lado e sentou sobre o pano. Encostei na rocha e continuei em pé. Ele estendeu a mão para mim, em um convite silencioso para sentar ao lado dele. Medi minhas opções e achei melhor encarar meus pés afundando na areia.

—Vem, amor. Senta aqui —ele chamou, sorrindo. Demorou, mas o sorriso dele esvaiu até surgir um semblante preocupado.— O que você está escondendo de mim, Elara? Elara?

Ele levantou em um salto quando, involuntariamente, comecei a chorar.

—O que você não está me contando, El? Fala pra mim, pelo amor de Deus —ele quase gritou comigo, desesperado. Não tive opção.
—Eu tenho… problemas. Com as minhas pernas —falei, secando as lágrimas.
—Que tipo de problemas, Elara?
—Problemas, Ginoble. Problemas.
—Quais problemas, Elara?
—Sinto dores, tá bom? —Gritei, no mesmo tom que ele gritou comigo.— Tá feliz agora? Dores. Dores, Ginoble. É tudo dores.
—Que tipo de dores, El?
—Dores, Ginoble. Dores.
—Quando?
—Quando eu sento. Deito. É complicado.
—Há quanto tempo?
—Desde antes de sairmos do hospital. É aleatório. É complicado.
—Mas o que a gente faz?
—Nada. Já estou fazendo o que é possível. Não podemos fazer mais nada e é só esperar tudo voltar ao normal.
—É por isso que nós dormimos…?
—Em quartos separados? Também. Não vou fazer com que a última coisa que você veja no dia seja eu chorando, me contorcendo de dor enquanto meu músculo cria vida própria.
—E você ia me contar isso quando?
—Nunca. É bem óbvio que te contar não estava nos meus planos.

A pior coisa é esperar a pessoa explodir de raiva, mas acho que quase ter morrido tantas vezes quanto eu nos últimos meses, faz qualquer um ponderar os próprios sentimentos e escolher à dedo quais coloca para fora. É horrível e me sinto idiota e fraca, como se não estivesse completa o suficiente para ouvir uma ou outra opinião da qual eu discorde, e me sinto um lixo porque realmente não consigo. Gianluca sabe que, se entrar em uma briga agora, eu vou chorar, e vai ser um choro de culpa por não ter contado para ele antes; exatamente como quando ele brigou comigo por eu não sair mais de dentro de casa e ficar mofando naquele sofá. Para ser bem sincera, não foi uma discussão, ele só me pressionou várias vezes dizendo que eu precisava sair de casa, então me veio uma onda de solidão, me senti completamente errada, e comecei a chorar. Depois pedi desculpas por chorar, porque ele está certo, mas simplesmente não consigo controlar no momento em que está acontecendo e o choro simplesmente vence.
Sei que ele odeia me ver chorando, ver qualquer pessoa chorando, e é por isso que ele vem me abraçar e coloca a mão na minha nuca me fazendo encostar a cabeça no ombro dele. E continuar chorando.

—Você não confia em mim, não é? —Perguntou baixinho ao meu ouvido.

Não sei. Não é mais uma questão de confiar ou não confiar, embora meu histórico de não confiar nas pessoas seja extenso ao longo da minha vida. É mais uma questão de não querer me mostrar, não querer mostrar tudo o que tem aqui dentro, tudo o que ficou quebrado e errado e não vai melhorar. Não vai mudar. E dói.
Dói porque eu quero ser melhor, eu preciso ser melhor, ser inteira novamente para todos aqueles que precisam de mim, e eu não consigo. Não conserta. Nada conserta.
Ele sorriu. Um sorriso leve, tímido, e eu soube que, se ele pudesse, abriria meu cérebro só para saber o que estou pensando, o que está acontecendo aqui dentro.

—Vamos conversar, El. Me conta tudo o que está acontecendo com você. Eu estou ficando preocupado, amor. Mais preocupado.

Ele beijou minha bochecha e me apertou contra si.
Chorei mais.
Ficamos assim, sob as estrelas, enquanto minhas lágrimas caiam e caiam e caiam sem parar.
Muito tempo depois, ele me soltou do abraço, mas segurou firme minha mão e me fez caminhar até a parte da areia onde as ondas do mar conseguem atingir. Nada muito fundo, apenas meus pés ficaram submersos na água que ia e vinha aos poucos.
Ele me virou de frente para ele e colocou as mãos no meu rosto quando fechei os olhos. Não aguento olhar para ele, encará-lo, quando ele me olha cheio de ternura e amor.

—El, olha pra mim —disse, baixinho. Continuei de olhos fechados sentindo a mão dele fazer carinho no meu rosto. Segurei as lágrimas.— Você lembra de quando estivemos na praia, juntos, pela primeira vez? Nós nem éramos amigos direito naquele tempo, mas, acho que no fundo, bem lá no fundo, eu já te amava desde que te encontrei naquela balada, eu só não sabia.

Ele encostou os lábios nos meus e sentou na areia molhada, sem se importar com as ondas molhando as roupas dele. Ainda não queria, mas ele me olhou com tanta ternura que me vi implorando a Deus, e qualquer outro ser maior do que eu, para que as minhas pernas não dessem sinal de vida própria.
Não adianta pedir, quando eu vou entender isso?
Sentei, onde Ginoble pediu, entre as pernas dele e assim que meu corpo encostou na areia, sentado, no exato momento em que a primeira onda bateu de leve me molhando, os músculos da minha panturrilha começaram a se contrair e aquela dor, mil vezes mais forte que um formigamento, veio com tudo. Já aprendi algumas posições que a fazem ficar mais suportável, até ela simplesmente passar, como se nunca tivesse acontecido nada, então dobrei as pernas e encostei meu tronco nelas, a envolvendo em um abraço e segurando o grito de dor bem fundo na garganta. As pernas do Ginoble me apertaram e ele se inclinou sobre mim até conseguir colocar a mão nas minhas pernas e sentir o vai-e-vem do músculo por si só. Demorou, mas finalmente passou. Não chorei, não gritei, mas continuei ali, abraçando as pernas, com medo de tudo voltar novamente.
As mãos dele já subiam e desciam acariciando meu braço enquanto as minhas lágrimas, finalmente, saiam.

—Eu estou aqui, meu amor. Você sabe que eu estou aqui e não vou te deixar por motivo nenhum. Eu não me importo com as cicatrizes, não me importo com a dor, não me importo em dividir isso com você. Eu quero dividir tudo com você, então, pelo amor de Deus, El, me deixa te ajudar. Me deixa tentar fazer algo por você, me deixa mostrar que eu te amo. Deixa, por favor, deixa eu te ajudar. Deixa eu ficar com você, deixa eu carregar um pouco desse peso. Eu te amo, Elara. Entende isso. Não vou te deixar, não vou.

Ele me puxou até meu corpo encostar sobre o dele e ele me abraçar forte. Descansei o rosto na curva do pescoço dele e fiquei ali, quieta, chorando, enquanto a água do mar ia e vinha e ele cantarolava baixinho, intercalando a música com beijos no meu rosto, me puxando contra si cada vez mais.
Até restar só nós dois. Até o mundo não existir mais.

*

Ele não falou nada, não puxou assunto em momento algum, como se soubesse que aquele silêncio me reconstruiria mais do que qualquer conversa. E esperou, pacientemente, eu parar de chorar e me concentrar nele, no cheiro dele, e me deixar envolver nesse mundo que ele cria só para nós.
Tenho plena consciência de que, se ele pudesse, arrancaria toda a dor de mim, e não é apenas porque ele diz isso, várias vezes, ao meu ouvido, mas porque seu eu pudesse, se precisasse, faria exatamente o mesmo por ele.

—Você é como o céu —falou, baixinho. Fiquei quieta esperando ele concluir.— Gosto dessa comparação desde que te conheci, naquela balada. Mas claro que, naquele dia, pensava isso por conta dos seus olhos. Hoje percebo que não há comparação melhor para você, e não é só porque os seus olhos são os mais lindos que eu já vi na vida. É porque você consegue ser tudo, ser exatamente tudo. Você não se importa de ser a base para muita coisa, de ser o centro para muita coisa, e ficar longe dos holofotes disso de alguma forma. Se alguém surge perto de você, precisando de você, você cede todo o espaço possível, você se doa. E se deixar, se te der liberdade, você consegue ser a coisa mais linda do mundo, mas poucos percebem isso. O Sol, a Lua; as nuvens, a chuva; as estrelas. Você é o meu céu estrelado, Elara. Eu consigo enxergar cada estrela que brilha em você, mesmo quando as nuvens tentam esconder, eu consigo enxergar. Elas brilham nos seus olhos, elas brilham em você, em cada parte de você e eu enxergo isso. Agora eu enxergo isso. Obrigado por ser o meu céu estrelado.

Céu estrelado, quem mais faria uma comparação dessas?
Ainda assim, sorri para ele, entre lágrimas, e as mãos dele apertaram minha cintura quando o beijei.
Ali, naquele momento, percebi que não adianta mais tentar fugir, tentar fingir, tentar afastar. Ele é, simplesmente, a base mais sólida da minha vida. A base da minha vida.
E o amo.
O amo de um jeito como nunca amei ninguém antes.
De um jeito novo, de um jeito diferente. De um jeito único.

—Eu te amo, Ginoble —falei. Ele sorriu e me beijou novamente.
—Isso aqui é de vocês? —Gritou um estranho que estava apontando para as coisas que deixamos perto da rocha. Ginoble fez cara de irritado por terem nos interrompido.
—Sim, é nosso —Gritou em resposta. O rapaz pediu desculpas e explicou que geralmente as pessoas deixam coisas na areia e ele só queria confirmar que aquelas tinham dono.— Vamos embora? Daqui a pouco as pessoas vão começar a aparecer aqui, correndo, e a praia não será mais nossa. Você sabe como eu odeio dividir as coisas que eu amo.
—É, eu sei —falei esboçando um sorriso. O beijei novamente e ele relutou muito em estragar aquele momento mágico que, finalmente, havia conseguido construir.
—Eu vou levantar primeiro e você espera que eu te ajudo.

Esperei, como um cachorrinho adestrado e feliz, enquanto ele levantava. Estendeu a mão para mim e me ajudou. Me apoiei nos ombros dele, e ele me envolveu em um abraço forte pela cintura, quando fiquei em pé e a mesma dor voltou. Ele, com certeza, me sentiu tremer e colocou mais força no abraço enquanto sussurrava “eu estou aqui. Fica tranquila.”
A dor passou, mas ele ainda me abraçava forte e ainda me apertava contra ele.
Qualquer pessoa que olhasse diria que estávamos apenas nos abraçando, mas só nós dois sabíamos que, se ele não me envolvesse daquele jeito, eu não conseguiria ficar em pé.

—Eu não acredito que você estava me privando de todo esse momento, de te manter segura nos meus braços —disse, brincando. O beijei, ciente de que ele não esperava isso. Eu só queria beijá-lo.
—Estou te privando de tantas coisas, e é com isso que você se importa —falei e ele deixou escapar uma gargalhada. Me arrepiei.

Ele segurou minha mão, firme, pegamos nossas coisas no chão e caminhamos, devagar, até a casa dele. Odeio os degraus, mas fazer o quê?

—Não gosto desses degraus da sua casa —falei enquanto me encostava na parede e esperava ele abrir o portão. Ele sorriu.
—Nossa casa —corrigiu envolvendo minha cintura com um braço e me puxando para si novamente, encostando os lábios nos meus outra vez. Acho que nossos lábios nunca se tocaram tanto em tão pouco tempo.— Pelo menos por enquanto, até podermos ir embora para qualquer outro lugar que você quiser. Qualquer outro.

Sorri olhando o brilho nos olhos dele e meu olhar parou ali, nos lábios dele, observando enquanto eles se tornavam lindos, sorrindo, e se aproximando de mim.
O beijei, novamente, e ele soltou um protesto baixinho quando mordi o lábio dele, me preocupando em não machucá-lo. A mão dele parou no final da minha lombar, na calça molhada cheia de areia grudada no meu corpo. Sorri, pedi desculpa e a tirei dali.
O deixei rindo, recolhendo as coisas que ele mesmo deixou cair no chão para colocar a mão em outro lugar, e caminhei pelo jardim até a porta e tive de esperá-lo, já que só ele tinha a chave.

—Quando você puder andar e abaixar novamente, vai pagar por isso, tenha certeza, El. Te amo, mas você vai sofrer um pouquinho também.
—Você é tão cruel —brinquei, esperando ele abrir a porta.
—Sou mesmo.

Ele abriu a porta e esperou que eu entrasse só para me puxar novamente pelo braço e me dar um novo beijo.

—Você tem que parar com isso —sussurrei, quando a boca dele trilhava pequenos caminhos pelo meu pescoço;
—Nunca vou para com isso.

Sorri. Nos beijamos novamente e fomos direto para o banho, cada um no seu quarto.
Não durmo com o Ginoble desde que acordei do acidente, e ele nunca me pressionou com isso, acho que ele tem medo de avançar algum sinal. Ginoble nunca viu a cicatriz na minha barriga, nem os pequenos pontos cicatrizados, já quase sumindo, das minhas costas, nem as cicatrizes na minha perna, os pontos roxos que insistem em não sumir dali, é exatamente por isso que só uso calças e blusas de mangas compridas, para tentar esconder minhas cicatrizes e marcas, meus pontos roxos e vermelhos e aqueles que nunca mais voltarão a ser normais como antes.
Odeio meu corpo agora, cheio de marcas, cheio de coisas que não eram para estar ali, cheio de sinais de coisas que eu quero poder esquecer, assim como o meu rosto. Odeio o meu rosto agora, odeio as cicatrizes nele, embora algumas delas estejam sumindo, embora eu saiba que nunca sumirão por completo. Usar o cabelo solto, só chama mais atenção para o meu rosto, então nunca mais o usei assim, apenas preso em um rabo de cavalo alto, embora cada uma das marcar fique evidente, não ficam chamativas; diferente das minhas costas, das minhas pernas e da minha barriga.

Desde que eu vi cada uma das marcas, tenho vergonha e tento escondê-las do Ginoble, embora ele finja não se importar, ou talvez não se importe mesmo, porque sempre que pode se preocupa em colocar a mão sobre cada uma delas, me lembrando de que elas estão ali. Então me escondo dele, não deixo ele ver meu corpo mais do que o meu rosto, não deixo ele dormir comigo, não deixo ele explorar lugar nenhum, porque todos os lugares estão marcados, estão quebrados, estão rachados. Até hoje, até agora. Já faz mais de dez minutos que entrei no quarto e não movi um centímetro sequer para ir até o banheiro, ou tirar a roupa molhada e cheia de areia que estou usando. E estou tentando decidir se deixo a minha vergonha e insegurança vencer essa batalha novamente.
Achei melhor não pensar muito de modo que rapidamente me vi batendo à porta do quarto do Ginoble. Eu já estava para bater na porta novamente quando ele a abriu. Já havia tomado banho e estava usando apenas uma toalha amarrada na cintura, enquanto usava outra, menor, para tentar secar a água do cabelo. Era o meu Ginoble, ali, na minha frente, e não havia nada de diferente no corpo dele. Nada.
Totalmente diferente do meu.

—Cielo? —Falou quando percebeu que eu estava muda.
—Você me chamou do quê? —Perguntei, pensando ter entendido errado.
—Céu —disse, abrindo um sorriso lindo.— E se prepara porque tô pensando em te chamar de Estrela também. Algum problema com o seu banheiro?
—Não. Acho que está tudo certo com o banheiro. Eu… queria te perguntar uma coisa.
—Qualquer coisa… Cielo —nem eu aguentei segurar o sorriso.
—O que você acha? Das cicatrizes?
—Das suas cicatrizes, você quer dizer?
—É. O que você acha delas?
—Das poucas que você me deixa ver… —fez um pausa e colocou a mão no meu rosto. Já me acostumei a esse movimento dele, onde, logo em seguida, faz o polegar deslizar pela cicatriz na maça do meu rosto.— Sinceramente? Não vejo problema algum. E ainda acho que elas, de alguma forma, te deixam mais bonita. Eu sei que você não gosta delas, nem um pouco, mas… eu acho que gosto. Acho que já me acostumei a vê-las.

Eu já estava decidida a não deixar meus pensamentos viajarem por muito tempo. Antes que eu mesma percebesse, estava tirando a camisa de manga longa e, pela primeira vez, mostrando aquela cicatriz horrível para alguém com quem me importo de verdade.
Aquilo surpreendeu até ele, pela forma assustada como ele me observou tirar a roupa. Assim que as joguei no chão, a mão dele pousou na minha cintura e ele abaixou para ver aquele estrago mais de perto. Por alguns segundos, me arrependi de estar ali. Foi nesse segundo que dei um passo para trás e senti a mão do Ginoble me puxando para perto novamente. Ele levantou e grudou o corpo dele ao meu.
E sorriu.

—Acredite em mim, estou ainda mais apaixonado por você.

Sorri e ele me puxou para si novamente, como se tivesse medo de que, se não me tomasse para si, algo de ruim fosse acontecer. E eu precisava tanto daquilo, tanto. Eu precisava dele, exatamente daquele jeito, naquele momento.

Continua…
Fic revisada em 2023.

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